Quando se discute o exercício do poder punitivo, de modo geral este é retratado em termos de dominação ou repressão. Ocorre, porém, que a forma repressiva não é a única “mecânica” do poder. Não é nem mesmo a preferencial, se analisarmos o último século.
Surge assim a necessidade de um outro critério de análise acerca das manifestações do poder punitivo. Foucault propõe que examinemos este em termos de guerra. “Política [criminal] como guerra prolongada por outros meios” (2016: 275), em inversão da máxima de Clausewitz. Esta proposta se mostra extremamente profícua para estudos de criminologia e política criminal. De modo cada vez mais despudorado o direito penal se apresenta com as vestimentas de batalha, combate, guerra. Suas estratégias, táticas, sua própria linguagem, já não se escusam de assumir as feições sangrentas do front. Utilizar a “lógica” da guerra como princípio de estruturação do direito penal e da política criminal traz impactos profundos, que precisam ser analisados multidisciplinarmente. Tanto do ponto de vista sociológico quanto do ponto de vista da filosofia política, o discurso de guerra permanente não parece compatível com o Estado Democrático de Direito. Essa análise merece um estudo cuidadoso, extenso, genealógico. No momento, pretende-se apresentar de modo breve pontos nevrálgicos em que a implantação do princípio de guerra no interior do sistema penal concretiza antagonismos insuperáveis com os fundamentos da democracia constitucional. O primeiro deles tem que ver com o conceito de pessoa. Dentro da sistemática do Estado Democrático de Direito, o conceito de pessoa ganha centralidade. O sistema jurídico orbita a noção de dignidade da pessoa humana, não suportando discriminações. O Estado Democrático possui cidadãos sob seus cuidados, não súditos sob seu domínio. Aprofundando esta concepção, é preciso destacar que não há, na lógica constitucional democrática, situações em que se permita ao Estado retirar, de qualquer pessoa, o status de sujeito portador de dignidade. Este status é inerente à pessoa; não apenas lhe pertence, lhe define. Significa dizer que, não importa quem seja ou o que faça, a pessoa não será considerada coisa em hipótese alguma. Kant foi quem melhor delineou esta exigência, na segunda configuração do imperativo categórico: "Age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio." Embora este seja um conceito primordial, antigo e bastante singelo da conquista do Estado de Direito, fortalecido com o desenvolvimento dos direitos humanos e a ampliação das noções acerca da democracia, parece ser um dos elementos mais difíceis de serem introjetados no senso comum. Impressiona ver o quão longe o grosso da população se encontra da percepção acima descrita. Os clamores por ditadura ou a sanha punitivista hipócrita, que aponta a necessidade de repressão violenta dos crimes alheios (sempre dos alheios), é embebida em argumentos que soariam absurdos mesmo para um cidadão com pouco estudo na França ou na Inglaterra do final do séc. XVIII. Em que o princípio de guerra adultera o conceito central de pessoa, base da democracia constitucional conforme apontado, transfigurando o sistema penal em uma máquina distinta daquilo que deveria ser num Estado sob os auspícios de uma Constituição Democrática? Zaffaroni constrói muito bem a resposta desta questão quando trata do inimigo no Direito Penal. Conforme o autor demonstra, a identificação de alguém como inimigo desde há muito figura como mecanismo de legitimação de eliminação daqueles que desinteressam ao poder. Em sua análise, chega ao conceito de hostis no direito romano, aquele que poderia ser morto sem consequências ao homicida em virtude da posição daquele como inimigo público. Cabia ao Senado decretar o status de hostis e esse decreto tinha o condão de “deixar o cidadão em condição semelhante à do escravo, para tornar-lhes aplicáveis as penas que eram vedadas para cidadãos” (2007: 23). Carl Schmitt é quem traz esta noção para dentro da teoria do estado de direito de modo mais franco, atribuindo ao soberano o poder de decisão quanto a distinção entre amigos e inimigos do Estado. Ao tratar do conceito de “político” Schmitt defende justamente que natureza do Estado é cindir de modo claro cidadãos de “estrangeiros”, amigos de inimigos. Giorgio Agamben, ao teorizar sobre o estado de exceção como técnica de governo incrustada nas democracias constitucionais do pós-guerra, nota que a possibilidade te suscitar a excepcionalidade opera como mecanismo capaz de criar um sistema de direito dual, aplicado circunstancialmente de acordo com os interesses hegemônicos quando estes encontram resistência dentro do ordenamento tradicional (democrático). O que torna essa manobra visível na contemporaneidade é que o Estado se vê obrigado, diante do aumento dos conflitos, asseverados pelo crescimento do abismo social entre uma pequena minoria e uma massa cada vez maior de seres “descartáveis”, a “sacar” os argumentos de exceção com cada vez mais frequência. A pergunta intrigante que Agamben traz (2004: 90) é: “o que acontecerá quando exceção e regra se tronam indiscerníveis”? Detalhe que merece menção é o de que o Prof. Pedro Serrano vai utilizar as lições de Agamben para demonstrar que o poder jurisdicional se torna, em democracias mais recentes, implantadas em países marginais, a principal via de concretização do estado de exceção. Uma análise das decisões em matéria penal dos tribunais nacionais e mesmo do STF não deixa dúvida acerca da pertinência e precisão do diagnóstico de Serrano. A consequência da identificação de um inimigo público para o sistema penal é visceral. Basta lembrar que o próprio Brasil permite a pena de morte em tempos de guerra. Ou seja, é a guerra que permite toda uma alteração do sistema penal, operando uma divisão no ordenamento ao dar ensejo a dois direitos penais simultâneos – um voltado para cidadãos, repleto de garantias e limitações, e outro para inimigos, dando ensejo a pena capital e outras medidas implicitamente aceitáveis, numa acepção perigosa de que “quem pode o mais pode o menos”. Note que, enquanto estamos tratando de uma guerra declarada, entre Estados soberanos, ainda que a guerra seja hoje claramente deslegitimada sob muitos prismas, estamos dentro de um ambiente em que se presume paridade de armas e algum consenso sobre a inevitável violência direcionada. O problema é que a aceitação desta lógica no trato do Estado para com seus cidadãos impõe um antagonismo invencível. Ou todos são pessoas, sujeitos de direitos fundamentais e garantias invioláveis, ou não. Quem decidirá sobre o momento em que um cidadão vira inimigo? Com base em que critérios? Quais os limites deste poder de decisão? Se o cometimento de determinado delito afasta a condição de pessoa, quais os delitos entrarão nesta classificação? Sob que valoração? Enfim, não há como construir um sistema de direitos democrático que atribua a qualidade de cidadão, de portador de dignidade, calcado em uma decisão externa, ad hoc, suscetível de instrumentalização política. Só há convívio em sociedade sob regime democrático se, a priori, todos são reconhecidos como iguais em dignidade e sem a possibilidade de “extração” deste status. Sendo assim, o discurso populista de “guerra ao terrorismo”, “guerra às drogas”, “combate à corrupção”, embriagado em termos e táticas de luta armada, serve apenas para a inflamação de uma população a quem se dá pouquíssimo conhecimento histórico de qualidade, sem o qual o senso comum continua a cambalear sob as promessas de uma eliminação do mal através do emprego de um mal maior, a guerra penal. Como as crianças ensandecidas do clímax da obra O Senhor das Moscas, a população clama pela eliminação do inimigo, de algum inimigo, de alguém em que possam descarregar toda a frustração e insegurança a que vivemos submetidos. A polícia militarizada dá o toque final para este cenário permanente de guerra. Numa guerra só há um lado vencedor. Só sobram os homicidas, os que mataram mais e melhor. De guerra em guerra, onde foi que ficou pelo caminho a ideia de que éramos todos semelhantes, provenientes de um ancestral comum? PS: eu pretendia trazer aqui comentários acerca do chamado “direito de guerra”, em especial da Convenção de Genebra, mas o texto acabou se estendendo antes de chegar neste ponto. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Membro do IBCCRIM Membro da ABRACRIMI Advogado Referências: AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016 GOLDING, William. O Senhor das Moscas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda, 2016 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O Inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007 Comments are closed.
|
ColunaS
All
|
|
Os artigos publicados, por colunistas e convidados, são de responsabilidade exclusiva dos autores, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento da Sala de Aula Criminal.
ISSN 2526-0456 |