O tema drogas assemelha-se à tapeçaria de Penélope. A serena esposa de Ulisses trabalhava em sua arte e ao aproximar-se do fim desmanchava-a pelo simples fato de ter de escolher um pretendente para tomar o lugar de seu marido, desaparecido na guerra. A sua esperança pelo retorno do marido era enorme. Ocorre que ao desmanchar a peça que nunca ficava pronta, ganhava sem saber tempo para a chegada de seu amado das guerras em Tróade. O que aconteceu com sua chegada foi uma chacina de todos os pretendentes que abusavam da hospitalidade de seu castelo e desafiavam, de certa forma, sua nobreza. O tapete nunca foi fiado até o fim, sendo assim considerado uma eterna alusão ás ilusões que se causa quando uma promessa não é cumprida adequadamente, ou quando não se quer chegar a um ponto específico. É neste ponto especificamente que nos encontramos agora. Anos atrás o produto Tylenol infantil foi retirado das prateleiras para um recall. Aconteceu que sua tampa, ou bico dosador, não segurava quantia de liquido suficiente alto dosando assim o paciente que acreditava estar recebendo a dose correta ao seu peso e idade. Os genéricos do produto passaram a ganhar espaço uma vez que começaram a ser conhecidos pelo mercado, de toda forma, sendo que o comercio sempre se transforma, evoluíram as vendas de remédios considerados genéricos, mas que possuem características similares às famosas marcas. Nada de muito instigador ou diferente, apenas troca-se o nome pela fórmula utilizada, ou na hipótese de buscar clientes pelo rótulo, cria-se então um designativo semelhante ao produto o qual o originou e dessa forma, comercializa-se de todos os variados tipos de remédios que se possa imaginar. O mercado abre suas prateleiras numa busca incessante por novos clientes e aquilo que antes era apenas invisível, como sugeria Adam Smith, agora possui estrondosa força a ponto de influenciar e empurrar as vendas de drogas, como se as tivesse ministrando. Numa analogia sintética entende-se por impor ao meio social e a todas as pessoas produtos dos quais elas não necessitam para funções que elas não realizam e com intuito de encharcar-lhes de dores que elas não têm. A venda desses produtos é como a tapeçaria de Penélope: quando ocorre de estar acabando, de uma forma ou outra, retorna ao começo com a próxima cartela, desnecessária, muitas vezes. Todavia, o sentido que se tem nessa divagação é simples e possui o intuito de afirmar que as mazelas espalhadas pelas drogas permitidas são maiores ainda quando se entende que a permissão de uso de certos medicamentos, genéricos ou não, é ainda pior que qualquer droga que tenha sua existência conhecida como ilícita. Simples: seu uso além de consentido é aquele que, sem prudência mais valora os mercados e infiltra ganhos fáceis ao comércio de drogas. Fato esse que colabora veementemente para o vício e para a dependência de produtos antes não necessários e antes não conhecidos; mazelas antes não absorvidas e antes não aceitas. Ainda assim, o mercado infringe, propaga, divulga eexterna sua “preocupação” com a saúde dos “doentes” validando cada vez mais laboratórios e novas fórmulas que como mágica, irão fazer seu cabelo parar de cair ou com certeza, irá utilizar sua concentração mental da melhor forma possível. Drogas não necessárias, muitas delas produzindo os efeitos em seus comerciais da estética e da preocupação excessiva com a aparência, num mundo de efeitos desiguais em sociedades cada vez mais excludentes daqueles considerados diferentes. Essa exclusão quando não consegue seus objetivos, que é o de minar os diferentes, opta pela marginalização e pela segregação de uma sub-raça, que ela considera como marginais. Para esses não adianta a droga da estética vendida nas mercearias e farmácias do mundo consumidor, mas sim, entender que a vida possui mesmo em sua negação caminhos que se abrem em torno das indiferenças, transformando os diferentes iguais em sua união. Dessa conciliação de dessemelhantes às sociedades, os “marginais” também possuem suas drogas, de uma forma ou outra, tão útil quanto os paracetamóis, ritalinas, remédios antidepressivos entre outros espalhados civilização afora. Quer dizer que qualquer classe, qualquer cidadão, qualquer pessoa, ao menos uma vez já utilizou algum tipo de droga em sua vida, ou mesmo, as utiliza com frequência ainda que entendendo suas contraindicações e suas possibilidades de defasar a saúde, ao mesmo tempo que pretende melhora-la. Mesmo assim, se considerar analiticamente as medidas dos produtos considerados drogas licitas usadas e que mais interferem na saúde da população que qualquer outro tipo de droga ilícita, o exemplo que nos surge à mente é o açúcar. O rico e inigualável caldo da cana que se transforma, após inúmeras “melhorias” no açúcar branquinho e refinado que utilizamos à mesa, é um dos produtos mais tóxicos para o coração, aumentando o colesterol, alimentando células que vêm a possuir enorme possibilidade de transformarem-se em cancerosas, entre outras situações, sendo uma “droga” que se consome diariamente. A partir do momento em que estão liberadas certas drogas, como os remédios, ou por exemplo a emblemática ritalina, que deve apenas ser utilizada por aquela pessoa que precisa da droga, reconhecida a partir de analises clinicas de seu médico, a responsabilidade passa a ser exclusivamente da pessoa que, sem ordem médica passa a usá-lo. De toda forma, certas drogas como analgésicos e antiácidos entraram para o rol de medicamentos utilizados numa forma de aceitação social, mesmo que administrando sua posologia em pequenas quantidades, ainda assim considera-se uma droga. Nesse sentido, os produtos tóxicos liberados que se vendem nas farmácias são aqueles que mais viciam o sujeito, pois uma vez utilizada sem nenhum preconceito, contraindicação ou referência negativa, voltará a ser utilizada na maioria dos casos. Howard Becker ao estudar as condutas dos viciados em maconha interpretou a seguinte situação: geralmente aqueles que iniciam a prática são levados pela curiosidade ou pela afirmação dentro do seu grupo de semelhança, perante aos outros. Todavia, alerta o sociólogo, que situações que envolvem a primeira vez do uso da substância geralmente são traumáticas. Dessa forma, entende que os sentidos que se aguçam negativamente ao primeiro contato com a droga, que é a tontura, o enjoo e náuseas, a fome e a perturbação mental geralmente são sentidos com grande influência, e provavelmente, após sanada dúvida, não volte mais a utilizar-se da droga. Diferente dos refrigerantes e dos açucares que se encontram em promoção nos mercados e que são os tóxicos mais procurados e que podem viciar, sem dúvida, prontamente. No entender de Becker, a droga ilícita como a maconha passa a ser usada como um ritual entre iguais, mas que possui em seu cerne um poder alucinógeno consideravelmente débil, todavia, as contraindicações numa primeira dose e toda sua ruptura com a boa saúde e bem-estar faz com que a primeira experiência, na maioria dos casos, se torne a última. Por outro lado, o açúcar mascavo é vendido pelo mercado capitalista a exorbitantes preços e mesmo que se utilize dele para temperar o alimento, a experiência pode ser diferente e inaceitável, voltando assim para o açúcar refinado, que é o mais conhecido e mais saboroso. De fato, o vício tem lá suas finalidades identificadas aos paladares das pessoas que se ajustam em sua diferença. A maioria irá preferir o produto refinado enquanto a minoria após o primeiro uso irá continuar na maconha. Após os estudos de Becker realizado com usuários da droga percebeu-se, em toda amplitude do uso da droga ilícita, que a responsabilidade daquele que procura sanar seu vício torna sua prática impopular, isto é, deseja utilizar a droga em sua privacidade, sem que alguém de seu vínculo familiar ou de amigos que não conheçam esse seu vício o vejam satisfazendo-se. Por outro lado as drogas mais consumidas como a Ritalina, mais viciantes que a maconha ou outras ilícitas, são ministradas às crianças entendidas como impassíveis, indiferentes ou que não conseguem concentração, a todo o momento, em qualquer consultório, sem qualquer cerimônia. De toda forma, a discussão sobre qualquer tipo de droga, seja ela licita ou ilícita, assemelha-se e muito com a história do tapete de Ilíon, onde Penélope ganhava tempo destruindo o seu trabalho manual. Quando nos encontramos próximos a uma conclusão ou saída digna que possa atender a todos os interessados, entre eles, a sociedade, usuários, viciados, doentes, alguma coisa nos puxa o tapete, como se o desfiasse abaixo de nossos pés. Essa aterradora destruição só pode ser causada por uma força muito maior que qualquer vicio, que qualquer doença ou que todos nós juntos; na sociedade do consumo, já sabemos qual seria essa potência. Muitos interesses estão em jogo, muitas empresas farmacêuticas e companhias químicas ganham em média, muito mais que qualquer traficante de algum ponto de tráfico do Brasil. Por outro lado, a opinião pública ainda carece de mais informações e maiores discussões a respeito do tema, que deve ser considerado como um problema social e de saúde e menos como problema do direito penal ou da polícia. A afirmação de Cornelius Castoriadis vem a calhar, para finalizarmos: "Numa sociedade autônoma, uma sociedade verdadeiramente democrática, é uma sociedade que questiona tudo o que é predeterminado e assim libera a criação de novos significados. Em tal sociedade, todos os indivíduos são livres para escolher criar para suas vidas os significados que quiserem, e puderem". Iverson Kech Ferreira Advogado especializado em Direito Penal Mestrando em Direito pela Uninter Pós-graduado pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, PR, na área do Direito Penal e Direito Processual Penal Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Internacional É pesquisador e desenvolve trabalhos acerca dos estudos envolvendo a Criminologia, com ênfase em Sociologia do Desvio, Criminologia Critica e Política Criminal REFERENCIAS: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Introdução à Sociologia do Direito Penal. 6° ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011 BECKER, Howard S., Outsiders, Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2008. COMTE-SPONVILLE, André. O capitalismo é moral?Martins Fontes, São Paulo, 2005.
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