O título do presente artigo é oportuno ao considerar a obra que dá a base para o que aqui se expõe. “À Espera de um Milagre”, de Stephen King, é um livro que cativa o leitor por diversos motivos. Dentre estes, pode-se mencionar o assombro causado diante da constatação de que o sistema processual penal é falho na atribuição da culpa (num sentido amplo) a um acusado. Sim, o final é triste, tal qual a vida de muitos acusados que acabam condenados injustamente. O livro narra a história do cotidiano de uma prisão, mais especificamente no setor do corredor da morte, onde presos estão apenas aqueles que foram condenados à pena capital. O protagonista é um agente penitenciário, o qual narra suas memórias quando da época em que trabalhou mantendo enclausurados os condenados que aguardavam pelo fatídico dia de suas mortes. O enredo oferece diversas perspectivas possíveis que merecem análise, já que além de ser aprazível pelo entretenimento que proporciona, apresenta algumas questões que despertam a curiosidade e a reflexão do leitor. Foquemos aqui na história daquele personagem que chega a ser mais importante na trama do que o próprio protagonista: o condenado John Coffey. John Coffey é um preso incomum, principalmente ao se levar em conta a sua estatura e o fato de passar a apresentar algumas particularidades envoltas no sobrenatural. Foi preso pela acusação de ter estuprado e assassinado duas crianças. As circunstâncias nas quais foi encontrado (com o corpo das crianças mortas em seus braços), além da condição não dita (mas perceptível aos olhos do leitor quando considerado o contexto em que se passa a história) – homem negro, “gigante” e “estranho” -, contribuíram para que fosse condenado à morte. Assim, John passa seus últimos dias na prisão aguardando pelo dia em que acabará por sentar na cadeira elétrica e dará seu último suspiro, quando várias histórias nesse meio tempo acabam se cruzando, dado o contato que é narrado no livro entre outros condenados e os guardas. O problema é que John Coffey não praticou o crime pelo qual foi condenado. John não assassinou tão menos estuprou as vítimas. Ao leitor de “À Espera de um Milagre” é confidenciando que John possui um dom, um poder, um talento sobrenatural. Tal condição, de certo modo, contribui para que John estivesse no lugar errado e na hora errada (ou, na realidade, no lugar certo, mas na hora errada, pois o tempo transcorrido entre a violência sofrida pelas vítimas e o encontro destas por John impossibilitou qualquer chance deste em salvá-las). Foi encontrado em situação de suposto flagrante. As provas apontavam contra si. Não era um acusado de boa aparência. Foi julgado e condenado. A pena? A Morte! A abordagem realizada no presente texto se dá com relação aos perigos existentes quando da valoração exacerbada no processo penal para com determinadas provas. Vejo que no caso de John Coffey, foram dois os principais fatores que ensejaram em sua condenação. O mais óbvio, é a situação na qual foi encontrado, com as meninas mortas em seus braços. O outro é a sua condição enquanto pessoa: se ainda hoje há um preconceito não confessado por grande parte da sociedade, o que dizer da época em que se passa “À Espera de um Milagre” (década de 30)? Somados, ‘culpado’ foi a decisão que John recebeu no processo em que enfrentou. Infelizmente, não foi possível no processo o demonstrar de sua inocência. E no caso do direito processual brasileiro? Há o risco de ocorrer algo do tipo, a saber, a condenação de um inocente? O Brasil se situa num nível considerável de civilidade, pelo menos em tal sentido (comportando algumas exceções), a saber, com relação à pena de morte, vez que a mesma é vedada (artigo 5º, XLVII da Constituição Federal). Pudera, pois a resposta para a pergunta feita acima é amplamente positiva. O risco não apenas existe como se faz presente na prática. Os fatores que contribuem para a falha no sistema são vários. Apontemos aqui alguns: a insistência no meio jurídico de ainda se ensinar, se falar e, pior, acreditar na “verdade real”; a relativização das provas ilícitas no processo; a lamentável permanência da dicotomia ‘nulidade relativa X nulidade absoluta’; a defesa do poder instrutório (descabido) do juiz no processo; a grande valoração dada a determinadas provas. Considerando que a armadilha processual na qual John Coffey caiu foi principalmente a valoração dada à determinada prova (o suposto flagrante), analisemos tal problemática. Vejo que tal como John, muitos acusados no processo penal brasileiro acabam condenados indevidamente diante de um endeusamento de determinada prova. Os exemplos mais clássicos, tanto quanto drásticos, se dão quando do ‘reconhecimento de pessoa’ e da ‘palavra da vítima’. Para além da utilização quando necessária de tais provas (quando adequadas e produzidas conforme previsto em ordenamento jurídico), evidencio aqui de modo crítico a problemática que se esconde por trás das melhores das boas (ou más) intenções no cenário processual. Inicialmente destaco a ‘palavra da vítima’. Sabe-se que grande parte da jurisprudência acata a possibilidade de atribuição de autoria com base apenas na palavra da vítima em determinados crimes. A justificativa que embasa tal pensar se dá no sentido de que em alguns crimes inexiste qualquer outro meio de comprovação deste que não a palavra da vítima. Dentre estes se têm o delito de roubo e o de estupro. Daí que muitos são os processos em que o acusado, seja culpado ou inocente, acaba sendo condenado com base meramente na palavra da vítima. Muitas vezes tais condenações não levam em conta a necessidade deste tipo de prova estar em sintonia com os demais elementos do processo, tendo como resultado os John Coffeys na vida real. Já quanto ao ‘reconhecimento de pessoa’ o sintoma é ainda mais grave. Mesmo se na prática o procedimento seguisse o que estipula o Código de Processo Penal em seu artigo 226, os problemas enfrentados pela “psicologia do testemunho” (e dificilmente considerados nos caos penais) evidenciariam a dubiedade de tal tipo de prova. Nossos processos mentais, nossas lembranças, nosso sistema cognitivo são mais falhos (ou menos “poderosos”) do que costumamos imaginar. Julgamo-nos atentos à detalhes, perspicazes em análises de lembranças, sabichões em recordar eventos passados, mas isso tudo é quebrantado quando se faz um estudo sério da coisa toda. Nossas lembranças não são tão fiéis com relação ao ocorrido como supomos. E é aí que reside o perigo em se atribuir um peso grande à prova de ‘reconhecimento de pessoa’. As falhas são gritantes em tal aspecto, principalmente quando se constata que o procedimento previsto para a realização do ‘reconhecimento de pessoa’ é simplesmente ignorado pela prática forense. Pior, as lutas defensivas contra esse tipo de atropelo de formalidade necessária são vencidas pelos Tribunais quando atestam se tratar de mera ‘nulidade relativa’, dando assim carta branca para que continue se descumprindo o procedimento como previsto. Mais uma vez, novos John Coffeys surgem desta celeuma. Considerando tais problemáticas apontadas (apenas algumas poucas dentre tantas que permeiam o cenário jurídico), temos que o risco concreto de um inocente ser injustamente processado pode resultar numa ainda mais injusta condenação. O próprio sistema contribui para isso. Assim como John Coffey, muitos acusados indevidamente estão à espera de um milagre. Torçamos e lutamos para que estes não tenham o mesmo fatídico fim que John teve. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia BIBLIOGRAFIA CONSULTADA KING, Stephen. À Espera de um Milagre: um romance em seis partes. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
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