Artigo do colunista Iuri Machado no sala de aula criminal, vale a leitura! ''Feito este breve esclarecimento, necessário se faz apontar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (em diante, Corte IDH) entende que é direito convencional da vítima atuar no processo penal. Outrossim, conforme lecionam Leticia de Andrade PORTO e Eduardo CAMBI, “as sentenças da Corte IDH devem servir como standards interpretativos a todos os países signatários, a fim de nortear a máxima efetividade dos direitos humanos, inclusive como precedentes a serem seguidos nos sistemas de justiça locais” (2021, p. 46)''. Por Iuri Machado Em recente o artigo, nominado “O MP e o divã: ‘quem sou?’ ‘Ou tenho os pés de Curupira?’, Lenio STRECK teceu críticas ao Ministério Público e sua atuação na persecução penal, especialmente, quanto à satisfação do resultado e eventual recurso da vítima (vítima será tratada como sinônimo de assistente de acusação, confusão terminológica do legislador, criticada pela doutrina). Para Streck, a vítima não teria o direito de interpor recursos quando o Ministério Público não o fizesse, entendendo que seria dever do parquet se manifestar pelo não conhecimento dos recursos. Afirmou o professor:
[...] se a ação é pública incondicionada, o dono da ação é o MP. Se ele se contenta com o resultado de uma sentença ou acordão, parece claro que o Estado descansou sua tese e seu interesse de agir. Quem fala pelo Estado é o MP. Há uma série de problemas que exsurgem quando estamos diante de casos em que o MP não recorre e o assistente de acusação o faz, como se fosse o titular do direito de ação penal. ... Se se admitir que o assistente atue autonomamente, estão admitiremos que o assistente assume o papel do Estado. Porém, paradoxalmente, ele será um Estado-B, porque o Estado-A já se pronunciou. Isso é esquizofrenia pura. Ou bipolaridade jurídica. De todo modo, numa palavra final, o que não pode ocorrer é o Ministério Público, instituição que possui as mesmas garantias da magistratura — às vezes o MP esquece disso —, transformar-se em assistente do assistente de acusação. Percebe-se, para Streck, a vítima deveria ter um lugar de fala reduzido no processo penal (segundo ele, “o modelo constitucional brasileiro não tinha albergado a figura do assistente de acusação”), visão que é compartilhada por muitos professores de processo penal (alguns, por ele citados). O instituto da assistência à acusação é muito debatido pela doutrina e, de forma sucinta, existem três correntes doutrinárias a tratarem de seus contornos de atuação: 1ª) Corrente minoritária, que defende a inconstitucionalidade do instituto, sob fundamento de que o Ministério Público tem competência suficiente para representar vítima e sociedade, ainda, que a habilitação de assistente serviria à vingança privada; 2º) Corrente que defende que o único interesse possível do assistente seria a obtenção de uma sentença condenatória definitiva, possibilitando, assim, a ação de execução ex delicto; 3ª) Corrente que defende que o assistente tem interesse para além do patrimonial, visando uma condenação que seja justa e proporcional à infração penal. Para os objetivos e limites do presente artigo, cita-se apenas aqueles que adotam a terceira corrente. Dentre eles, temos Douglas FISCHER, que em contraponto à Pacelli, na obra que assinam em coautoria, adota a terceira corrente de forma mitigada: “Com a devida vênia, assim não pensamos. Se a Constituição garante a possibilidade do ajuizamento de ação penal privada nos crimes de ação pública se esta não for intentada no prazo legal (art. 5º, LIX), daí deflui, inexoravelmente, que se atribuiu uma função primordial ao assistente da acusação, transbordando, a discussão, para muito além de eventuais querelas e interesses patrimoniais. Embora não se retire da esfera do parquet a titularidade da ação penal (art. 129, I, CF), se confere expressa legitimidade ao diretamente interessado para agir diante da eventual inércia ministerial. Nessa linha, não partilhamos da tese de que o assistente da acusação teria, no processo penal hodierno, uma função meramente patrimonialista. É certo que sua participação na ação penal pública é assessória (suplementar), mas ao se lhe conferir a possibilidade de iniciar a ação penal pública é porque sua função no processo penal está vinculada precipuamente à efetiva responsabilização criminal do agente que tenha cometido eventual infração. Desse modo, crê-se que sua legitimidade recursal – sempre supletiva, nunca é demais dizer – é a mais ampla possível, nos limites, evidente, das previsões legais (princípio da legalidade).” (2021, p. 2374) Também adota a terceira corrente Renato Brasileiro de LIMA, para quem a atuação da vítima serve, ainda, à pacificação social: Considerando que a própria Constituição Federal outorga ao ofendido o exercício da ação penal privada subsidiária da pública se acaso verificada a inércia do órgão ministerial (art. 5º, LIX), é de se concluir que o interesse do ofendido não está limitado tão somente à reparação civil do dano, alcançando, na verdade, a exata aplicação da justiça penal. Funciona o assistente, enfim, como verdadeiro auxiliar do Ministério Público, prestando auxílio ao órgão acusador, suprindo, inclusive, eventuais falhas cometidas pelo Parquet no curso da persecução penal. Ademais, como destaca a doutrina, a intervenção do ofendido como assistente da acusação contribui para o serenamento dos ânimos exaltados com a prática do crime, aplacando, também, eventual desejo de se fazer justiça com as próprias mãos. Atuando ao lado do Ministério Público, o assistente não substitui o Estado no exercício da pretensão punitiva. No fundo, passa a ter a oportunidade de acompanhar o processo e a possível responsabilização penal do acusado, nos termos da lei. A fim de melhor esclarecer a terceira posição, necessário se faz entender a origem da atuação da vítima e o porquê de ser a posição que mais se coaduna com um processo constitucional e convencional. Julio B. J. Maier, ao analisar a origem do instituto da assistência à acusação, destaca que a vítima sempre esteve presente na persecução penal, ajudando na composição do dano e na solução de conflitos sociais, mas foi retirada de tal lugar pela “Inquisición, que expropió sus facultades al crear la persecución penal pública y desplazó por completo la eficacia de su voluntad en el enjuiciamiento penal al transformar todo el sistema penal en un instrumento del control estatal directo sobre los súbditos” (2003, p. 528). Acrescenta MAIER que são lamentáveis posicionamentos no sentido de que a vítima teria como fim “la venganza privada o el procurarse represalias, razones que al fin y al cabo representan una suerte de retribución privada”, pois, para MAIER, com apoio em Jorge L. Ricardo e Frank, professores que alegam isso refletem posicionamentos conservadores “para intentar expulsar a la víctima de un procedimiento penal que le concede algun protagonismo y para evitar la creación de nuevos caminos participativos” (2003, p. 607). Acrescenta, ainda, que a vítima é “un protagonista principal del conflicto social, junto al autor, y el conflicto nunca podrá pretender haber hallado solución integral, si su interés no es atendido” (2003, 611). Percebe-se, a atuação da vítima (como assistente à acusação), é crucial para a pacificação social e, ao contrário do que defendem aqueles que alegam sua inconstitucionalidade, evita a vingança privada, pois a vítima colabora “para que la solución sea integral y satisfaga todos los intereses reales en juego, cuya manifestación civilizada es, precisamente, el procedimiento judicial” (2003, p. 658). Feito este breve esclarecimento, necessário se faz apontar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (em diante, Corte IDH) entende que é direito convencional da vítima atuar no processo penal. Outrossim, conforme lecionam Leticia de Andrade PORTO e Eduardo CAMBI, “as sentenças da Corte IDH devem servir como standards interpretativos a todos os países signatários, a fim de nortear a máxima efetividade dos direitos humanos, inclusive como precedentes a serem seguidos nos sistemas de justiça locais” (2021, p. 46). Em condenação proferida contra o Brasil, no caso Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio De Jesus e seus Familiares, a Corte IDH consignou que a vítima do crime deve ser interpretada de forma ampla, em posicionamento que abarca a legislação processual penal brasileira (conforme art. 268 do CPP): 251. Esta Corte entende que os membros dos núcleos familiares podem, por direito próprio, ser vítimas de violações do artigo 5 da Convenção, por conta da dor sofrida por seus entes queridos. Para isso, cabe à Comissão e aos representantes apresentar prova dos danos sofridos pelos familiares, para que possam ser considerados supostas vítimas de uma violação do direito à integridade pessoal. No caso Roche Azaña v. Nicarágua, a Corte IDH condenou o Estado da Nicarágua pela falta de proteção do devido processo legal por parte da vítima, “violó las garantías judiciales y protección judicial consagrados en los artículos 8.1 y 25 de la Convención Americana”, porquanto, ante a absolvição dos autores do fato criminoso, não existia previsão legal de recurso por parte da vítima. A Corte afirmou: 81. La Comisión sostuvo que la legislación nicaragüense establecía la imposibilidad de apelar el veredicto del Tribunal de Jurados, por lo que el procedimiento no ofreció las garantías suficientes para escrutar tal decisión y asegurar que la misma no fuera arbitraria ni violatoria de los derechos a las garantías judiciales y a la protección judicial. 84. La Corte ha establecido que, de conformidad con la Convención Americana, los Estados Partes están obligados a suministrar recursos judiciales efectivos a las víctimas de violaciones a los derechos humanos (artículo 25), recursos que deben ser sustanciados de conformidad con las reglas del debido proceso legal (artículo 8.1), todo ello dentro de la obligación general, a cargo de los mismos Estados, de garantizar el libre y pleno ejercicio de los derechos reconocidos por la Convención a toda persona que se encuentre bajo su jurisdicción (artículo 1.1). Asimismo, ha señalado que el derecho de acceso a la justicia debe asegurar, en tiempo razonable, el derecho de las presuntas víctimas o sus familiares a que se haga todo lo necesario para conocer la verdad de lo sucedido e investigar, juzgar y, en su caso, sancionar a los eventuales responsables. 85. Por otro lado, esta Corte ha desarrollado el derecho a ser oído, previsto en el articulo 8.1 de la Convención, en el sentido general de comprender el derecho de toda persona a tener acceso al tribunal u órgano estatal encargado de determinar sus derechos y obligaciones. La Corte ha reconocido que el derecho a ser oído comprende dos ámbitos: por un lado, un ámbito formal y procesal de asegurar el acceso al órgano competente para que determine el derecho que se reclama en apego a las debidas garantías procesales (tales como la presentación de alegatos, hacer planteamientos, aportación de prueba y, en síntesis, hacer valer sus derechos). Por otra parte, ese derecho abarca un ámbito de protección material que implica que el Estado garantice que la decisión se produzca a través de un procedimiento que satisfaga el fin para el cual fue concebido. A Corte IDH, há muitos anos, tem posicionamento consolidado de que é direito da vítima ter acesso direto à justiça e, sobretudo, direito ao devido processo legal. Dentre outros casos, no Caso V.R.P., V.P.C. e outros vs. Nicarágua, a Corte afirmou “que as garantias devidas do art. 8.1 da CADH amparam o direito a um devido processo do acusado e, em casos como o presente, também protegem os direitos de acesso à justiça da vítima de um delito ou de seus familiares e a conhecer a verdade dos familiares.” Feitos estes apontamentos, devemos voltar à pergunta formulada por STRECK: “O Ministério Público e o divã: quem sou eu?”. O Ministério Público não é apenas o custos legis, mas, sim, custos juris, de acordo com MAZZUOLI e outros, é “agora responsável pela fiscalização de cumprimento e/ou aplicação de todas as normas em vigor na ordem jurídica brasileira, com especial enfoque para as decorrentes de tratados internacionais de que a República Federativa do Brasil é parte” (2021, p. 19). Ao Ministério Público cabe defender a correta aplicação das normas internacionais de direitos humanos, realizando o devido controle de convencionalidade das normas de direito interno. Conforme leciona MAZZUOLI, é atribuição do Ministério Público: “não apenas o dever de exame da convencionalidade material das normas de direito interno, senão também a apuração da convencionalidade procedimental das leis internas relativamente às previsões (igualmente procedimentais) constantes em tratados de direitos humanos ratificados e em vigor no Estado, ao que de nomina devido processo convencional” (2021, p. 21). A lição de MAZZUOLI tem amparo em decisão proferida pela Corte IDH na supervisão de cumprimento de sentença do Caso Gelman vs. Uruguai, ocasião em que a Corte IDH deixou claro que Juízes e demais órgãos vinculados à administração da justiça (em especial, Ministério Público) devem velar pela correta aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, levando em consideração a interpretação feita pela Corte IDH: todas la autoridades estatales, están en la obligación de ejercer ex officio un “control de convencionalidad” entre las normas internas y la Convención Americana, en el marco de sus respectivas competencias y de las regulaciones procesales correspondientes. En esta tarea, deben tener en cuenta no solamente el tratado, sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana. A vítima tem o direito ao devido processo legal (e convencional) e o Ministério Público tem o dever de velar para que isso ocorra. Como defensor da ordem jurídica, não cabe ao Ministério Público negar à vítima o direito de interpor recursos, afinal, como lecionam PORTO e CAMBI, “a efetivação dos direitos humanos deve ser analisada soba a ótica da ampliação da cidadania estatal, passando a figurar como uma cidadania universal, diante da amplitude dos direitos humanos existentes” (2021, p. 25). O Ministério Público, ao sentar-se no divã, deve se lembrar que seu papel é a defesa do Estado Democrático de Direito e que as normas de direito internacional são jus cogens. Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB/PR. Membro da Comissão de Defesa das Prerrogativas Profissionais da OAB/PR. Ig: @iuri_vrmachado REFERÊNCIAS: CAMBI, Eduardo; PORT, Leticia Andrade. Ministério Público resolutivo e a proteção dos direitos humanos. Coleção Ministério Público Resolutivo. Belo Horizonte: D’Plácido, 2021. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Gelman Vs. Uruguay. Supervisión de Cumplimiento de Sentencia. Resolución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos de 20 de marzo de 2013. _____. Caso Roche Azaña e outros vs. Nicarágua. Sentença de 03.06.2020. _____. Caso V.R.P., V.P.C. e outros vs. Nicarágua. Sentença de 08.05.2018. _____. Caso Empregados a Fábrica De Fogos De Santo Antônio De Jesus e seus Familiares vs. Brasil. Sentença de 15.07.2020. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 8. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2020. MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal: parte general: sujetos procesales. - 1. ed.- Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2003. MAZZUOLI, Valério de Oliveira; COSTA E FARIA, Marcelle Rodrigues da; OLIVEIRA, Kledson Dionysio de. Controle de Convencionalidade pelo Ministério Público. Rio de Janeiro: Forense, 2021. OLIVEIRA, Eugenio Pacelli; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência – 13. ed. – São Paulo: Atlas, 2021. STRECK, Lenio Luiz. O MP e o divã: "quem sou?" "Ou tenho os pés de Curupira?". disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jun-09/senso-incomum-mp-diva-quem-sou-ou-tenho-pes-curupira.
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