Primeiro ato: um bebê acaba de testemunhar o cruel assassinato do próprio pai. O seu olhar fotografa a assassina impiedosa. Tal olhar é a sua sentença de morte. A mulher é capaz de qualquer coisa para esconder os seus crimes. O bebê é uma perigosa testemunha. A sua mente é como uma caixa-preta que registra os acontecimentos à sua volta. Novas tecnologias permitem a leitura do acervo mental. Eis a interceptação da realidade. Morre também o bebê. Vestígios apagados (ou não!).
Segundo ato: um homem é atropelado e machuca o braço. Prejudicado pela lesão, quer ser indenizado. É o futuro. Novas tecnologias permitem novas dinâmicas investigativas. A seguradora cuida de tudo: é ré, investigadora e juíza da causa! Antes de indenizar, quer saber como foi o acidente. A investigadora designada é incansável. Tem ao seu dispor o leitor de mentes. Prova fácil, rápida e certeira. Não importa que invada a intimidade e a privacidade, que descubra os segredos mais recônditos. Interceptar a mente é a prova da moda. A investigadora tanto faz que descobre como foi o acidente. Visita a mente de uma testemunha que viu o fato. Problema resolvido, não fosse a descoberta fortuita de crime gravíssimo praticado por uma das testemunhas. Viu o que não deveria ver. Cruzou o caminho errado. Morre a investigadora. Vestígios apagados (ou não!). Terceiro ato: Um casal retorna de uma noitada. Embriagado, o motorista atropela um ciclista. Estrada isolada e sem testemunhas. O homem convence a mulher de que devem jogar o corpo ao mar. Ele é capaz de tudo para escapar da prisão. A mulher fica reticente, mas acaba aderindo. Corpo ao mar e é vida que segue. Remoído pela culpa, o homem retorna anos depois e diz à mulher que irá confessar. Ela fica desesperada, pois tem muito a perder. A vida para ele foi ingrata, para ela foi boa. Ele está irredutível. Ela também. Alternativa: matá-lo! É o que ela faz. E agora, o que fazer? Olha pela janela: um homem é levemente atropelado. Hora de agir. Tudo é planejado e o corpo eliminado. Vestígios apagados (ou não!). Da festa à morte do bebê (a narrativa aqui está invertida), o episódio “Crocodile” da série Black Mirror é angustiante! Do início ao fim! O enredo explora a aleatoriedade da vida, a interconexão ocasional entre eventos, a interação caótica entre desconhecidos. O mais assustador é perceber como a incerteza da vida pode transformar o mais cruel dos atos – o ato de matar – em escolha pragmática. “Crocodile” desnuda o homicídio, o mostrando de forma direta, realista, quase matemática! Afinal, do que as pessoas são capazes? A oportunidade faz o “ladrão”? E quanto ao homicida, pode-se dizer que a situação ocasional pode levar ao ato de matar? Em que condições ou circunstâncias? É interessante pensar que Black Mirror é todo projetado futuristicamente, mas, a despeito dos avanços tecnológicos que reproduz, bem revela, por outro lado, que o ser humano não se afasta dos instintos mais primitivos. O seriado tem a capacidade de retratar o futuro tecnológico em conexão com o passado antropológico. Em aparente contradição é possível dizer que o ato de matar é antiguíssimo e, ao mesmo tempo, contemporâneo. O homicídio talvez seja o objeto “científico” mais variavelmente estudado, interessa não apenas aos juristas, mas aos filósofos, sociólogos, psicólogos e tantos outros. Locke, Hobes, Rousseau são alguns dos que não descuidaram do assassínio no estudo da interação humana. As perguntas que norteiam o mais humano dentre o extenso rol de crimes, o homicídio, são tamanhas. Incalculáveis. O ato de matar possui diversas nuances que impedem a compreensão concreta do fenômeno “matar alguém”. O assassinato pode até passar por tentativas de ser explicado, mas jamais poderá ser conhecido em suas razões na totalidade. Dostoievski refletiu sobre o assunto em centenas de páginas, resultando numa das mais clássicas e intrigantes obras da literatura mundial, buscando, por traços da psicologia na literatura, entender as motivações prévias e as inquietações pós-homicídio. Com “Crime e Castigo”, contribuiu, e muito, para com os debates sobre o fenômeno do crime, ensejando e se aprofundando em novos questionamentos sobre o ato de matar. Não foi à toa que as inquietações sobre o fenômeno homicídio levaram André Peixoto de Souza a produzir uma série de textos[1] em que o assassinato figura como o protagonista nesses diversos enredos trabalhados, os quais foram posteriormente reunidos e ampliados numa obra sobre a temática. A pretensão das análises feitas pelo autor é no sentido de “suscitar alguma reflexão sobre essa prática que verdadeiramente constitui nossa cultura” [2]. “Crocodile” nos mostra uma série de assassinatos ocasionais. Para além daquele episódio tormentoso de um remoto passado do acidente de trânsito. A protagonista – Mia – realiza o ato de matar da mesma forma que alguém organizando uma casa bagunçada. A fim de por ordem em sua própria vida, escondendo os crimes sucessivos, mata todas as testemunhas, sem apresentar qualquer tipo de remorso. Tanto é assim que, após matar um bebê, Mia vai à apresentação escolar do filho, quase no estilo do filme brasileiro “Matou a família e foi ao cinema” da década de 1960. O episódio permite, ainda, inúmeras conexões jurídicas, notadamente a abordagem probatória sobre o “leitor de mentes”, talvez ficção não tão distante dos avanços da neurociência e, tristemente, não tão distante dos retrocessos do Processo Penal. Os meios probatórios, por força da Constituição, não deveriam afligir a intimidade e a privacidade, mas, se antes as cartas não podiam ser violadas, hoje são acessados anos e anos de trocas de e-mail e mensagens de celular. São os fins justificando os meios. Não é de se duvidar que, cedo ou tarde, o “sigilo da mente” passe a ser quebrado, em nome de “um bem maior” e tenhamos que debater sobre o direito fundamental à liberdade psíquica, algo maior que privacidade ou intimidade. Até George Orwel se surpreenderia com algo assim. As conexões entre o episódio e o direito são muitas, mas o foco da nossa abordagem foi o homicídio e as suas minúcias, a sua indissociabilidade aparente da condição humana. Ressalta-se por fim que esta é uma marca de Black Mirror: mostrar que tudo evolui, menos o comportamento humano. Enfim, na expressão nietzscheniana, somos “humanos, demasiadamente humanos”. André Luis Pontarolli Coordenador do Sala de Aula Criminal Mestrando em Direito - UNINTER Advogado Criminalista Professor de Direito Penal e Criminologia. Paulo Silas Taporosky Filho Advogado Especialista em Ciências Penais Especialista em Direito Processual Penal Especialista em Filosofia Mestrando em Direito pela UNINTER Membro da Rede Brasileira de Direito e Literatura Membro da Comissão de Prerrogativas da OAB/PR [1]“Teses sobre homicídio”, disponíveis as suas diversas partes em sua coluna no “Canal Ciências Criminais”, ou ainda em seu livro que leva o mesmo nome [2]SOUZA, André Peixoto de. Teses sobre homicídio – o livro está pronto! Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/teses-sobre-homicidio-livro-pronto/>. ISSN: 2446-8150. Acesso em 16/01/2018. Comments are closed.
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