Ela apertava forte a minha mão de menino de cinco anos. Estávamos atravessando a movimentada avenida Cândido de Abreu. Meus olhos, admito, não cuidavam dos carros que vinham e iam, iam e vinham. Estavam fixos naquela construção. Imponente, cercada por verde. Eu ainda não sabia ler. Soubesse, teria decifrado as letras talhadas na fachada e descoberto: eu estava encantado pelo Tribunal do Júri de Curitiba. Anos se passaram. Minha mãe soltou a minha mão. Aprendi a atravessar ruas movimentadas. E assisti, pela primeira vez, ainda adolescente, um julgamento perante o júri popular. Descobri, no preto das becas e togas, no calor dos debates, na soberania do sim ou do não, o que queria para o meu futuro. Assumo, aqui, a narrativa. Marcelo Balzer – o menino que aos cinco anos se encantou pela construção que se tornaria sua segunda casa – continuará sendo o protagonista, mas não mais o narrador da própria história. A humildade que lhe é característica impediria a revelação de detalhes que merecem ser contados. Começo contando que Balzer vestiu a beca preta, pela primeira vez, ainda estudante. O júri era apenas simulado. O talento de Balzer era real. Tão real que o verdadeiro advogado da causa o convidou para atuar em plenário, quando do julgamento. Eis o registro de sua primeira vitória. E não me refiro aqui à absolvição do acusado. Balzer me confidenciou que não consegue enxergar o resultado do julgamento como vitória ou derrota. Em um júri popular, há dor por toda a parte. Família chorando a perda da vítima. Família chorando a condenação do réu. A sociedade ferida. Ora pela impotência diante de dilemas morais. Ora tingida de remorso diante de dilemas sociais. A vitória referida é a vitória pessoal, de Balzer, que superou os próprios limites e ali, de beca preta, concretizou o sonho de pisar em plenário. Julho de 1995. Nova vitória. O menino, que agora já sabia ler, pôde encontrar seu nome na lista dos aprovados no concurso do Ministério Público do Paraná. Um mês depois, entrava no Tribunal do Júri da Comarca de Loanda, agora como Promotor de Justiça. Logo no primeiro júri, pediu a absolvição do acusado. Tal fato é revelador: Balzer assumiu o cargo de Promotor de Justiça. Como o nome já sugere, assumiu a busca pelo justo, jamais a condenação a qualquer custo. No segundo júri, Balzer entendeu ser caso de condenação. Assim sustentou. Assim pugnou aos jurados. Na defesa, um advogado experiente. Presidente da Subseção da OAB. Íntimo da sociedade. Conhecia e tratava os jurados pelo nome. O réu foi absolvido. Balzer questionou a si próprio. Questionou a profissão escolhida. Mas por pouco tempo. Transformou aquele julgamento em lições que até hoje carrega. A primeira é justamente essa: as mais importantes lições vêm das dificuldades. A segunda: um julgamento perante o júri não se resume aos autos. Nem às provas. Nem à técnica. O Tribunal do Júri é muito mais do que isso. Depende do olho no olho. Depende do tom da voz. Depende da confiança passada aos jurados. Depende da confiança sentida em si próprio. É por isso que se diz que o Tribunal do Júri é um retrato da vida. Há momentos em que as provas estão a nosso favor, mas, por alguma razão – que nos foge à compreensão – o vento sopra em sentido contrário. Há casos em que as evidências nos são contrárias e o vento, sempre ele, imprevisivelmente nos favorece. No Tribunal do Júri e na vida, não basta a crença e o conhecimento. Há que saber lidar com o sentido do vento... Eis que em 2003 tais ventos caprichosamente sopraram e trouxeram Marcelo Balzer novamente a Curitiba. Promotor do Tribunal de Júri da capital. Ali estava ele, atravessando a movimentada avenida Cândido de Abreu, com os olhos fixos naquela construção. Parecia, agora, menos imponente, prova de que o menino havido crescido. Mas igualmente bonita e cercada por verde. O coração de Balzer batia acelerado... No mesmo ano, também os passos de Balzer se aceleraram. Com a ousadia de quem fixa grandes metas e a rara determinação de quem as concretiza, o Promotor de Justiça completou a sua primeira maratona. Balzer escolheu a corrida pela mesma razão que escolheu o Tribunal do Júri: não compete com ninguém. Apenas com ele próprio. Não há vitória ou derrota. Há a superação dos próprios limites e o compromisso em dar, sempre, o que há de melhor e mais verdadeiro em si. Foi ali, na capital paranaense, que vieram tantos e tantos júris. Tantos e tantos quilômetros corridos. Cem, duzentos, trezentos, seiscentos, setecentos júris. Vinte, cinquenta, cem, duzentos, trezentos quilômetros (per)corridos. Marcelo Balzer, o menino das metas fixadas. O homem das metas cumpridas. Marcelo Balzer possui, hoje, um balde de medalhas. Cada uma, fruto, literalmente, do seu próprio suor. Foram três provas completas de iron man. Quinze meias provas de iron man. Mais de cinquenta maratonas. Mais de cem meias maratonas. Provas de cinco e de dez quilômetros foram tantas que a conta se perdeu. Marcelo Balzer possui, hoje, um fichário com todas as atas de júris realizados como Promotor de Justiça. As atas não registram vitórias ou derrotas. Mas o compromisso assumido consigo mesmo – e honrado. O milésimo júri foi feito ao final do ano de 2016. Marcelo Balzer foi o primeiro Promotor de Justiça do Paraná a registrar tal marca. Alguém duvidava que ele atingiria – e superaria – também essa meta? Volto para finalizar a narrativa. Por melhor intenção que tenha aquele que (d)escreve, sou eu o dono da minha história – início, meio e fim. O início vocês conheceram. O meio, conto agora. No esporte, quando nos excedemos, o corpo reclama. Fadiga, luxações, lesões. No trabalho, por mais que acreditemos e amemos o que fazemos, acontece o mesmo. As exigências cotidianas nos reduzem a sensibilidade. Nos embrutecem. Fazem com que nosso coração já não bata tão forte. Que a nossa respiração já não se altere. Decidi, por isso, me afastar do plenário. Atualmente, não estou vestindo a beca preta. Não tenho sentido o calor dos debates. Meus ouvidos não têm escutado o soberano sim ou não. Mas esse é o meio. Não o fim. O fim é difícil dizer. Superei metas, mas ainda não descobri o meu limite. Descobri apenas – como na inocência infantil e no entusiasmo adolescente – que minha vida é um eterno superar a mim mesmo. Meu coração, tenho certeza, ainda baterá forte, por debaixo da beca preta, em muitos e muitos julgamentos. Meus pés, tenho a mesma certeza, ainda percorrerão centenas de quilômetros. Talvez o fim, para mim, seja exatamente isso: cruzar a linha de chegada, que é onde fica o recomeço. Marion Bach Advogada Mestre em Teoria do Estado pela UFPR Professora de Direito Penal da UNICURITIBA e UNIFAE * Marcelo Balzer na narrativa de Marion Bach Comments are closed.
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