A problemática em torno da audiência de custódia que, apesar de ter como finalidade evitar o contato e permanência no cárcere, quando houver requisitos autorizadores para a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, tem se mostrado inócua por diversos motivos, dentre eles, a falta de efetivo policial e de juízes para a observância do prazo de 24 (vinte e quatro) horas em que, obrigatoriamente, o preso em flagrante deve ser ouvido.
Seja pelo fato de não ter quem o conduza até a autoridade judicial ou por não haver plantão judiciário durante os finais de semana e feriados, em grande parte das comarcas do interior do país, o que faz com que o prazo estenda-se para muito além do que a Resolução nº 213 do Conselho Nacional de Justiça prevê. Em razão da ausência de infraestrutura para a realização das audiências de custódia, observou-se que os tribunais, em especial, os estaduais, fizeram adaptações [flexibilizações] ao prazo estabelecido pelo CNJ, de acordo com suas capacidades estruturais. Alguns têm utilizado ‘dias úteis’, outros têm se valido da videoconferência e, há, também, os que simplesmente não realizam as audiências de custódia, em total afronta aos Tratados Internacionais e, consequentemente, aos princípios constitucionais da presunção de inocência, direito à liberdade, integridade física e dignidade desses cidadãos. Conforme prevê a Resolução nº 213 do CNJ, a principal finalidade da Audiência de Custódia é:
Ou seja, a audiência de custódia, tem como finalidade a aplicação integral de todos os direitos assegurados nos Tratados, em especial, a proteção da liberdade, dignidade e integridade física do preso, que será apresentado ao juiz, logo após a sua prisão em flagrante, para que esse verifique as causas de sua prisão; se houve tortura por parte dos agentes de polícia e, inclusive, a sua condição social e de saúde: se possui filhos menores, doença grave, transtorno mental ou dependência química (artigo 8º, inciso X). É neste momento - quando levado frente à autoridade judicial, pessoalmente e sem a presença de policiais -, que o preso terá seus direitos humanos minimamente assegurados, tendo a oportunidade de falar e ser ouvido, daí a importância de que as audiências não sejam realizadas por videoconferência e que o prazo de até 24 horas seja respeitado o máximo possível, porque nada se equiparará a esse contato direto. “Substituir a apresentação pessoal por uma oitiva por videoconferência é coisificar o preso e inseri-lo no regime asséptico, artificial e distanciado do online, matando ainda a possibilidade de controle de eventuais abusos praticados no momento da prisão ou da lavratura do ato” (LOPES JR; DA ROSA, 2015, p. 24). Por isso, também, imprescindível é que o juiz responsável por realizar a audiência de custódia seja da área criminal, inclusive, o plantonista, pois, apenas quem lida constantemente com casos de prisões tem a sensibilidade [ou pelo menos deveria ter] de analisar e reconhecer se o que está sendo falado [e até calado] pelo preso é verossímil, quando se está a falar de possíveis casos de tortura, posto que, não há análise do mérito da prisão nesse ato, apenas a sua regularidade e possibilidade de substituição por medida cautelar diversa. Dessa forma:
Outro papel de extrema importância no procedimento da audiência de custódia, sem o qual essa não pode ocorrer é a do advogado constituído e, na ausência deste, a Defensoria Pública, pois:
Ou seja, qualquer condução da audiência de custódia que fuja a essa lógica procedimental, pautada no contraditório pessoal e na oralidade é de nítida nulidade. Levando-se em consideração uma das motivações da Resolução do CNJ, como hipótese de solução “ao contingente desproporcional de pessoas presas provisoriamente”[2], cabe uma análise, mesmo que superficial, quanto à observação, ou não, do prazo de “em até 24 horas da comunicação do flagrante”, por alguns tribunais federais e estaduais, priorizando-se os pertencentes ao sul e sudeste do país, de acordo com suas respectivas resoluções e instruções normativas. Com relação ao Tribunal Regional Federal da 2º Região (RJ e ES): RESOLUÇÃO 31/2015, TRF 2, DE 18 DE DEZEMBRO DE 2015 Dispõe sobre a realização de audiência de custódia no âmbito da jurisdição da Seção Judiciária do Rio de Janeiro e da Seção Judiciária do Espírito Santo
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:
Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo: RESOLUÇÃO Nº 13 /2015
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná: INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 3/2016
Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina:
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
É necessário ressaltar que, as previsões legais dos Tribunais não traduzem a realidade verificada em cada cidade e estado, uma vez que, apesar de prever a realização das audiências “inclusive nos dias não úteis”, o Rio Grande do Sul tem sido o melhor [ou pior] exemplo quanto ao desrespeito à obrigatoriedade da audiência de custódia prevista na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, pois, simplesmente não as têm realizado[4]. Uma atitude completamente arbitrária e contraditória frente à superlotação de suas delegacias e inexistência de vagas nos seus presídios, além disso, das audiência realizadas [em setembro desse ano chegou a 79% de não realizadas[5]], quando o preso é apresentado [em 25% é frustrada sua apresentação][6], lidera o ranking das que mais culminaram em prisões. Segundo o CNJ, das 5.078 (cinco mil e setenta e oito) audiências feitas entre julho de 2015 e dezembro de 2016, no estado do Rio Grande do Sul[7], 4.319 (quatro mil, trezentos e dezenove) resultaram em prisão preventiva, um percentual de 85%. E, apenas, 15,17%, em liberdade provisória. Outro estado em situação alarmante é o Rio de Janeiro que tentou, de forma manifestamente arbitrária, limitar a abrangência da audiência de custódia, através do Aviso 80/2015, em “que determinou ser desnecessária a presença de preso em flagrante por violência doméstica contra a mulher à autoridade judiciária em 24 horas”[8]. Em Reclamação feita pela Defensoria Pública do Estado, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a APDF nº 347, obrigou a realização de audiência de custódia para todos os casos, sem exceção, exigindo, ainda, que fossem feitas em finais de semana, feriados e recesso forense. E quanto ao “sem demora”, constante na Resolução 29/2015 do TJRJ, o que seria, para quem seria? Parece não haver qualquer preocupação com a resposta, eis que, o prazo previsto na Resolução nº 213 não tem sido cumprido, tampouco, as exigências do STF[9], pois o próprio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro afirmou que “não existe lei alguma que o obrigue a realizar essa prática, em que pese haver decisão do STF determinando que os Tribunais de Justiça dos Estados implementem a prática em todas as comarcas”[10], assim, vem realizando deliberadamente as audiências semanas após as prisões em flagrante. Em relação à Resolução nº 740, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a preocupação está em delimitar os horários para a apresentação dos presos e a realização das audiências de custódia, com base no expediente forense, apenas. Sendo assim, quem for detido após as 10 horas (§2º) nas circunscrições previstas no artigo 3º, seria apresentado à autoridade judiciária apenas no dia seguinte, útil? Observa-se que, em relação aos Tribunais Federais, há uma preocupação maior em respeitar o prazo de 24 horas previsto na Resolução, seja pela organização [em escalas] ou pela disponibilização de plantão judiciário aos finais de semana e feriados, bem como durante o recesso forense. Porém, o mesmo não ocorre quanto aos Tribunais de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e Paraná, os quais se utilizam [intencionalmente] de expressões dilatantes do prazo, como: “sem demora”, “primeiro dia útil seguinte”, respectivamente. Exemplificando a previsão do Tribunal do Estado do Paraná, de acordo com a Instrução Normativa nº 3, se houver prisão em flagrante de um indivíduo na ‘sexta-feira santa/paixão de Cristo’, feriado nacional, e não houver na comarca juiz de plantão, a prisão em flagrante, inevitavelmente, durará 3 (três) dias, sexta, sábado e domingo, sendo a autoridade judicial informada sobre a prisão apenas na segunda-feira. Tanto é que, hoje, o Paraná é o estado que mais possui presos em delegacias[11], cerca de 9 (nove) mil, grande parte corresponde a presos provisórios, inclusive, os que aguardam a realização da audiência de custódia. Dentre os tribunais estaduais aqui analisados, o que mais se aproxima, em tese, do prazo idealizado e previsto pelos Tribunais Regionais Federais já demonstrados, é o Tribunal do Estado do Espírito Santo, que prevê a realização ininterrupta, inclusive, em finais de semana e feriados. Observa-se, assim, que mesmo tendo por fundamento e norte diversos documentos internacionais de cunho totalmente humanista, a idealizada audiência de custódia não conseguiu alcançar, de forma eficaz, o resultado pretendido, qual seja, a garantia dos direitos individuais inerentes ao preso, em especial, sua liberdade e integridade física, a partir do contraditório público, oral e pessoal. Seria a realidade diferente disso ou um pouco pior? Sabemos que, na prática, há cidades do interior em que um delegado de polícia cumula 4 (quatro), 5 (cinco) cidades, sendo um investigador e/ou escrivão o real responsável pela delegacia. É ele quem acompanha a apresentação do preso; ouve; lavra o termo e, por fim, o recolhe ao cárcere. Cumpre-se a formalidade e aguarda-se a chegada da autoridade policial, para que, somente então, sejam analisadas as condições da prisão o que, muitas vezes, nem ocorre, ficando o delegado de polícia adstrito à mera assinatura do APF, que dirá a existência de um plantão judiciário para a realização da tão idealizada audiência de custódia. Faltam condições, falta efetivo, faltou sensibilidade, é duro assumir, mas a audiência de custódia é natimorta, é ilógica. A gana em prender para demonstrar poder e responder aos anseios da mídia e do clamor público fez do cárcere a regra a que todos se submetem e pela qual todos esperam, prova disso é que até 2014, a população prisional brasileira era de 607.731 (seiscentos e sete mil, setecentos e trinta e uma), ocupando o 4º lugar[12], atrás dos Estados Unidos, China e Rússia, porém, segundo dados correspondentes a julho de 2017, do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil ultrapassou a Rússia, ao atingir o número aproximado de 726.712 (setecentos e vinte e seis mil e setecentas e doze) pessoas presas, em junho de 2016, estando agora no 3º lugar[13] no ranking dos países globais mais encarceradores. Sendo que, em média, 40% desses presos são provisórios, não têm condenação[14]. As intenções, como na grande maioria das leis, são boas, visam à inocência, integridade física e psicológica do sujeito, a possibilidade de se evitar o seu contato com o cárcere, no entanto, o problema está na vontade [ou falta de] em resolver a raiz do problema e, para isso, requer-se, sobretudo, uma nova mentalidade. Luana Aristimunho Vargas Paes Leme Graduada em Direito pelas Faculdades Unificadas de Foz do Iguaçu - Unifoz Especialista em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera - Uniderp Pós-Graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Assis Gurgacz - FAG Advogada [1] Não sei, não conheço, mas não gosto da audiência de custódia. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-jul-10/limite-penal-nao-sei-nao-conheco-nao-gosto-audiencia-custodia>. Acesso em: 10 nov. 2017. [2] Diagnóstico de pessoas presas apresentado pelo CNJ e o INFOPEN do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (DEPEN/MJ), publicados, respectivamente, nos anos de 2014 e 2015. [3] AM supera PE e lidera ranking de superlotação em presídios; Brasil tem 270 mil presos acima da capacidade. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/am-supera-pe-e-lidera-ranking-de-superlotacao-em-presidios-brasil-tem-270-mil-presos-acima-da-capacidade.ghtml?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=g1>. Acesso em: 10 out. 2017. [4] Justiça e governo do RS são acusados de não fazerem audiência de custódia. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-nov-10/defensoria-rs-afirma-estado-nao-faz-audiencias-custodia>. Acesso em: 10 nov. 2017. [5] Idem. [6] Implementação das Audiências de Custódia no Brasil: análise de experiências e recomendações de aprimoramento. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/politicas-2/alternativas-penais-1/arquivos/implementacao-das-audiencias-de-custodia-no-brasil-analise-de-experienciaserecomendacoes-de-aprimoramento-1.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017. [7] Audiências de custódia prendem mais do que soltam em 2/3 dos estados. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/audiencias-de-custodia-prendem-mais-do-que-soltam-em-23-dos-estados.ghtml>. Acesso em: 10 out. 2017. [8] Audiência de custódia também vale para Lei Maria da Penha, decide ministro. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-set-24/audiencia-custodia-tambem-vale-crimes-lei-maria-penha>. Acesso em: 25 set. 2017. [9] O fim das audiências de custódia é realidade no Rio de Janeiro. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/10/02/o-fim-das-audiencias-de-custodia-e-realidade-no-rio-de-janeiro/>. Acesso em: 10 out. 2017. [10] TJRJ descumpre realização de audiências de custódia e terá que responder ao STF. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/10/11/tjrj-descumpre-realizacao-de-audiencias-de-custodia-e-tera-que-responder-ao-stf/>. Acesso em: 12 out. 2017. [11] Disponível em: < http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/t/videos/v/estado-do-parana-tem-a-maior-quantidade-de-presos-em-delegacias-do-brasil/6295910/>. Acesso em: 19 nov. 2017. [12] Diagnóstico de pessoas presas apresentado pelo CNJ e o INFOPEN do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça (DEPEN/MJ), publicados, respectivamente, nos anos de 2014 e 2015. [13]Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/12/08/infopen-2017-o-processo-penal-de-excecao-em-numeros/l>. Acesso em: 08 dez. 2017. [14] Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/12/1941685-brasil-ultrapassa-russia-e-agora-tem-3-maior-populacao-carceraria-do-mundo.shtml>. Acesso em: 08 dez. 2017. Referências Bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 20 set. 2017. BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em: 10 abr. 2017. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas. Resolução nº 213, de 15/12/2015. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3059>. Acesso em: 11 abr. 2017. DA ROSA, Alexandre Morais; LOPES JR., Aury. Processo Penal no Limite. 1. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. MINAGÉ, Thiago M. Audiência de Custódia como concretização do contraditório na análise e uso das Medidas e Prisões Cautelares. In: SANTORO, Antonio Eduardo Ramires; GONÇALVES, Carlos Eduardo. [Orgs.]. Audiência de Custódia. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2017. NEWTON, Eduardo Januário. A defesa intransitiva de direitos: ácidos inconformismos de um Defensor Público. 1. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. RELATÓRIO INFOPEN. Disponível em: <http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-depen-versao-web.pdf>. Acesso em: 10 set. 2017. Comments are closed.
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