Nas duas últimas semanas tratei nesta coluna de uma possível nova abordagem criminológica acerca do momento de incidência e grau de força da mídia sobre os processos de criminalização primária e secundária. Podem ser lidos aqui e aqui.
Hoje gostaria de tecer breves reflexões sobre um fenômeno conexo, afim de avaliar suas correlações com esta proposta. Chamarei este fenômeno de populismo judiciário. A valoração do que seria “populismo” variou durante os séculos. Desde que Weber elencou o carisma como um dos possíveis fundamentos de legitimidade da dominação, considerando demagogo aquele que obtém sua posição política através da fé que lhe é empresta, em virtude da particular força de atração que este possui (vocação)[1], o conteúdo semântico do significante “demagogo” e a própria noção de medidas “populistas” sofreu modificações de sentido e apreciação valorativa. Mesmo em meados do séc. XX ainda era possível visualizar líderes carismáticos como representantes de um populismo ligado a valores sociais democráticos, fortemente conectados com direitos humanos, igualdade e solidariedade. O exemplo de Martin Luther King salta aos olhos. Ao mesmo tempo, sociólogos e cientistas políticos relatam haver uma ligação umbilical entre “populismo” e regimes totalitários. Pode-se afirmar que, em especial após a consolidação do Estado de Direito, nenhum líder consegue obter a concentração de poder necessário para levar avante um projeto de governo totalitário sem o apoio das massas. Daí a necessidade de uma propaganda “populista”, com o propósito de angariar e movimentar esse apoio. Zaffaroni estuda este aspecto, ao escrever sobre o Direito Penal do Inimigo. Elucidando o conceito de völkisch, escreve:
Com este esclarecimento, fica claro o papel decisivo que a legitimação “plesbicitaria”, obtida por discursos e medidas populistas, é capaz de engendrar. Essa percepção serve de base para análise do populismo judiciário - fenômeno observado em diversas democracias em crise. Nosso país, em sua atual conjuntura, é objeto de estudos por excelência desta ocorrência. Seria interessante desenvolver mais a fundo a pesquisa sobre o populismo judiciário, pesquisando quais as diferenças entre este e as formas “tradicionais” de populismo, os pontos em que se tangenciam, aquilo em que diferem em suas tentativas de legitimação e nos mecanismos que colocam em prática, nos efeitos que causam e no modo como atraem uma parcela diferente da população em suas manifestações. Sem adentrar a esses detalhes, já que isso estenderia esse texto para além do recomendável, pergunta-se: em que se compreende a existência de um populismo judiciário? De forma objetiva, acredito que seja possível delimitar as seguintes características: (i) constante manifestação de membros do poder judiciário na mídia, comentando os julgamentos mais “chamativos” da pauta (notadamente os sub judice do STF); (ii) uso dos meios de comunicação para promoção pessoal de magistrados, com lançamento de biografias em eventos de elevado preparo, prestigiados por personalidades públicas, hospedados em grandes livrarias ou centros de eventos; (iii) espetacularização do processo penal, com ênfase para os momentos em que o acusado é “ofertado” ao opóbrio público[3]; (iv) no caso do Brasil (e do Brasil somente) a criação de um canal de TV para transmissão de julgamentos (TV Justiça)[4], que impacta no conhecimento popular dos nomes e dos rostos de ministros do STF, aspectos que eram até então desconhecidos da população em geral, permitindo uma maior “isenção”[5]; (v) geração de cumplicidade entre os julgadores e a população, por meio do banalização do direito penal, criando “especialistas” vulgares em matéria sensível de direitos e garantias. Este processo é reforçado pelo efeito cascata de manifestações inflamadas nas redes sociais. Quais os impactos deste populismo para aquilo que tem sido o objeto de pesquisa levantado nesta coluna? Tenho proposto que a mídia funciona com mecanismos aptos a serem percebidos como uma terceira via dos processos de criminalização. Ao exercer, concentradamente, a criminalização primária e secundária, ela pode ser compreendida como gênese de um processo de criminalização terciária. Se quisermos, uma ampliação de competência dos dois processos anteriores, criando um terceiro mais efetivo, mais veloz, mais insidioso e mais minucioso. Neste sentido, o populismo judiciário se enquadra como um fomentador deste processo de criminalização terciária. Por meio dele, “vilões” selecionados podem ser expostos, sem uma quebra específica das regras do processo penal (ainda que se perceba uma quebra dos pressupostos e princípios que o fundamentam), como culpados, antes mesmo do início dos atos processuais, originando um julgamento pleno sem qualquer defesa, baseado unicamente no inquérito policial. O “criminoso” é rotulado ANTES daquilo que se costuma apontar nos estudos criminológicos como processo de criminalização secundária, ou seja, a efetiva atribuição da qualidade desviante através das medidas de controle social. Não que esse aspecto já não esteja presente nos estudos do labelling, mas que através do populismo judiciário eles são elevados a um grau de eficiência inédito. São também antecipados drasticamente. Qual é o elemento central que permite esse desenvolvimento? O interesse midiático em torno da situação. Diferente dos programas televisivos policiais rotineiros, diários, em que a criminalidade de rua é retratada para consumo do sadismo vulgar, o populismo judiciário dá vazão a um espetáculo digno de ocupar a capa das revistas de grande circulação, o horário nobre da televisão aberta, a contratação de toda uma série de “especialistas” para rodas de debate, reproduzidas em regime de plantão. Sendo este o caso, a mídia aparece como mecanismo necessário e suficiente para eleger, acusar, julgar e condenar determinados agentes. Dá origem, força e efetividade a processos de criminalização sobre pessoas ou sobre grupos. As chances de reverter o processo, após ter sido colocado em movimento pela mídia, mesmo no caso de absolvição em juízo, é ínfima, para não dizer inexistente. Um estudo criminológico contemporâneo deve enxergar a mídia, na sociedade de massa, pautada pelo consumo desenfreado de bens e de novidades, como mecanismo originador das condições de possibilidade para processos de criminalização ou como criadora destes processos. Paulo R Incott Jr Mestrando em Direito pela UNINTER Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela AbdConst Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal Advogado Membro do IBCCRIM Membro do ABACRIMI Referências: [1] WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. 18ª ed. São Paulo: Cultrix, 2011. pp. 68-69 [2] ZAFFARONI, Eugenio R. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011. pp. 57-58 [3] Recomenda-se a leitura da obra de Rubens Casara: Processo penal do espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. [4] Essa relação entre a TV Justiça e o protagonismo midiático do judiciário me veio à atenção através de uma palestra de Augusto de Arruda Botelho [5] Não se faz neste ponto uma valoração dos objetivos da TV Justiça, como a tentativa de democratização da justiça e melhor atendimento à regra da publicidade dos atos jurisdicionais. Apenas se aponta um efeito secundário de sua criação. Comments are closed.
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