Artigo do Colunista Iuri Machado, sobre a legítima defesa em casos de violência doméstica, embasados por julgados e casos de grande repercussão, vale a leitura! ''Percebe-se, assim, que urge que a doutrina penal brasileira passe a adotar, ou no mínimo explicar, os requisitos fixados pelo Comitê, sobretudo que nossos Tribunais (tal qual outros da América Latina, a exemplo do caso estudado) incorporem as convenções internacionais em seus julgamentos não somente nos casos em que as mulheres sejam vítimas, mas, também, naqueles casos em que sejam autoras, em especial, nos casos de legítima defesa''. Por Iuri Machado 1 REFERÊNCIA JURISPRUDENCIAL Incidente – “Gómez, María Laura s/ Homicidio Simple – Recurso de Casación” - Expte. N° 44-I-2010, Tramix Inc. Nº 55879/1 Ementa do julgado: Las cuestiones formuladas y sometidas a decisión son: I) ¿Es formalmente procedente el Recurso de Casación interpuesto por la defensa de la interna condenada? II) ¿Existe en el fallo recurrido alguna de las causales enumeradas en el Art. 428 del Código Procesal Criminal? III) En caso afirmativo la cuestión anterior, ¿Cuál es la ley a aplicarse o la interpretación que debe hacerse del caso en estudio? IV) ¿Qué resolución corresponde dar al caso en estudio? V) ¿Cual sobre las costas? [...] 2 O CASO Em 12/11/2010, Maria Laura Gomez foi condenada à pena de nove anos de prisão, pela prática do crime de homicídio simples cometido em face de Marcelo Appap, seu marido à época dos fatos. A acusada alegou em sua defesa que teve de agir em legítima defesa própria, vez que se encontrava em um quadro de violência doméstica praticado pelo sr. Appap, tendo se utilizando de uma faca, único objeto à sua disposição no momento, acabou por atingi-lo, sendo que o mesmo foi submetido a diversas cirurgias, vindo a falecer. A Cámara en lo Penal, Correccional y Contravencional N° 2 de la Primera Circunscripción Judicial considerou a acusada culpada. Após, esta interpôs recurso de cassação ao Superior Tribunal de Justiça de San Luis, alegando, dentre outros fundamentos: quanto a tese da legítima defesa, que a sentença “se limita a rechazar la misma a través de argumentos meramente dogmáticos, genéricos y abstractos”; que não houve a devida apreciação das provas e “y ni siquiera se detuvo en el análisis de la situación de violencia de género a la que era habitualmente sometida la imputada, por quien resultare ser finalmente la víctima en autos”; ainda, que a sentença “se refiere a la situación de violencia intrafamiliar o de género, manifestando que ésta es la que produce la disputa entre los intervinientes, siendo éste un dato vital para resolver el conflicto”; que a sentença “se omite la aplicación de la Convención Interamericana para prevenir, sancionar y erradicar la violencia contra la mujer y la Ley Nacional Nº 26.485 cuyos artículos 4 y 5 definen como violencia a los celos excesivos”. O Ministério Público contra-arrazoou o recurso, solicitando rejeição do mesmo, sob fundamento de que “para que se configure la legítima defensa, es necesario además de la agresión ilegítima, ‘la necesidad racional del medio empleado para impedirla o repelerla” y la falta de provocación suficiente por parte del que se defiende”. Com base nas teses defensivas, o Tribunal reformou a sentença condenatório, reconhecendo a legítima defesa. 3 OS FUNDAMENTOS DA DECISÃO A decisão iniciou por afirmar que o Código Penal contempla como requisitos para que se configure a legítima defesa uma agressão ilegítima, que se refere a uma conduta antijurídica atual ou iminente, que ocasione perigo de dano para integridade de um direito. Para apreciação da excludente, deve-se ter em mente “Ley N° 26.485, de Protección Integral a las Mujeres, cuya aplicación es de orden público (art. 1°), la cual tiene como Derechos Protegidos (art. 3)”, direitos reconhecidos pela Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, dentre outras legislações e direitos, sobretudo o direito a uma vida sem violência e sem discriminações; à segurança pessoal; à integridade física, psicológica e sexual, garantindo trato respeitoso a todas as mulheres em processos nos quais forem vítimas. Foi dada especial ênfase ao art. 16 da Lei de Proteção, que dispõe:
Afirmou-se que, tendo em conta a legislação citada, a acusada era vítima de violência de gênero por parte do sr. Appap, o que justificava sua reação frente as injustas agressões que sofria. Estas deveriam ser analisadas no contexto de violência doméstica, “en el cual se observan las características históricas de desigualdad de poder entre varones y mujeres y las características propias del ciclo de violencia”. Destacou que foram produzidas provas demonstrando que Maria Laura foi se distanciando de amigos, de sua vida social, ante o ciúme excessivo de seu companheiro, cujo perfil agressivo também foi objeto de prova. Ressaltou-se, ainda, que as mulheres vítimas de violência doméstica se encontram num círculo vicioso de violência: Cabe destacar que en un contexto de violencia doméstica, la mujer se encuentra entrampada en un círculo, donde la agresión es siempre inminente, precisamente porque es un círculo vicioso del que no puede salir, porque tiene miedo a represalias, sabe que en cualquier momento la agresión va a suceder, los celos siempre existen, con lo cual la inminencia está siempre latente, generalmente no se formulan denuncias por miedo, la víctima de violencia se va aislando y muy pocas veces cuenta todo lo sucedido, ya sea por miedo o vergüenza. Também foi afirmado que o ciúme excessivo gera um estado de violência permanente, o que não foi levado em conta pelo sentenciantes; que a acusada afirmou que o sr. Appap a estava ameaçando no dia dos fatos. Reconheceu, assim, que os requisitos da legítima defesa estavam presentes: La agresión sufrida por Gómez, era actual e ilegítima pues no se hallaba autorizada por el derecho (art. 34, inc. 6° letra a, Cód. Penal) y la condenada, se defendió con el cuchillo, ante los golpes de Appap, lo que constituye, en las circunstancias del caso, un claro ejemplo de lo requerido en el art. 34 inc. 6° letra b) del Cód. Penal. De tal modo, concluiu o voto afirmando que a confissão qualificada da acusada e legítima defesa deveriam ser avaliadas de acordo com as leis e tratados que protegem as mulheres vítimas de violência de gênero. 4 PROBLEMATIZAÇÃO A doutrina penal brasileira tem poucas divergências acerca da justificadora da legítima defesa, sendo certo que seus requisitos se encontram, de certa forma, pacificados. Conforme esclarece Juarez Cirino dos Santos (CIRINO, 2018), as excludentes de ilicitude são formadas por uma situação justificante e uma ação justificada. Sobre a situação justificante da legítima defesa, tem-se que é formada, conforme dispõe o art. 25, do Código Penal, por: a) agressão: toda conduta humana direcionada a atacar bens jurídicos, podendo-se incluir omissões e ações imprudentes, excluindo-se as hipóteses de ausência de conduta humana (por exemplo, sonambulismo); b) injusta: é a agressão que não foi provocada pela pessoa agredida, i.e., imotivada; c) atual ou iminente: aquela que está sendo realizada é atual, aquela que está na última fase do ato preparatório é iminente; d) a direito próprio ou de outrem: são interesses sociais protegidos pelo direito penal, sendo certo que todos os bens jurídicos individuais são suscetíveis de legítima defesa. Já a ação justificada é formada por elementos subjetivos, objetivos e pela permissibilidade: a) elementos subjetivos: de acordo com a teoria dominante, a ação justificada demanda conhecimento da situação justificante (agressão injusta, atual ou iminente, a bem jurídico próprio ou de terceiro); b) elementos objetivos: consiste no “emprego moderado de meios de defesa necessários contra o agressor” (CIRINO, 2018). Nesta devem-se avaliar a necessidade e moderação, consistentes na realização do menor dano possível ao agressor e pela atuação defensiva pelo período que durar a agressão. c) permissibilidade: há casos em que a legítima defesa não encontra amparo em limites ético-sociais, tal qual nas agressões de incapazes, nas de pessoas ligadas por relações de afetividades, agressões provocadas pelo agredido para poder agredir o agressor, agressões irrelevantes. Para fim do presente estudo, importante citar as lições de Cirino acerca da permissibilidade em casos de relações afetivas: Agressões entre pessoas ligadas por relações de garantia fundadas na afetividade, no parentesco ou na convivência (marido e mulher, pais e filhos, etc.), subordinam a legítima defesa às mesmas limitações ético-sociais mencionadas e, em regra, excluem resultados de morte ou de lesões graves- exceto no caso de risco de lesões sérias (a mulher usa faca para defesa contra agressão do marido com objeto contundente) ou de maus tratos físicos duradouros ou continuados (a repetição de agressões e surras do marido contra a mulher, por exemplo). A permissibilidade para legítima defesa é muito pouco tratada em situações de violência doméstica, veja-se que os exemplos citados por Cirino dizem respeito a agressões graves e atuais, ignorando toda legislação protetiva das mulheres que se encontram em situação de violência. Omissão dogmática presente em inúmeras cursos de direito penal Brasil afora. De tal modo, importante afirmar que a Organização dos Estados Americanos lançou, ao final de 2018, uma recomendação geral feita pelo Comitê de Especialistas do MESECVI, intitulada “Legítima defensa y violencia contra las mujeres”, na qual propõe reformulação dos requisitos da legítima defesa em casos de violência de gênero. Segundo o Comitê, muitas mulheres estariam sendo processadas criminalmente de forma indevida, quando acabam por terminar com a vida de seus agressores, muito embora tenham agido em legítima defesa. Muitos países, assim, ignoram o art. 7º, da Convenção de Belém do Pará, que determina que os Estados signatários tomem medidas para modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência de violência contra mulher. Para o Comitê, a legítima defesa deve ser analisada em três perspectivas: a dogmática penal, acrescida das estândares das Convenções protetivas; a valoração da prova sob uma perspectiva de gênero; obrigações internacionais dos Estados Partes que sejam decorrentes das Convenções. Nesta coluna, analisa-se a primeira perspectiva. Sobre os elementos da legítima defesa, para além da dogmática tradicional, o Comitê destaca que: a) existência de uma agressão ilegítima: a violência de gênero é uma agressão ilegítima, podendo ser física, sexual ou psicológica, podendo ocorrer num âmbito familiar, de unidade doméstica; b) iminência ou atualidade da agressão: o Comitê entende que a violência de gênero não deve ser tomada como algo isolado, senão que se deve entendê-la por seu caráter contínuo/permanente. Segundo o Comitê, a continuidade da violência deve ser entendida para além do exato momento da agressão, pois de sua continuidade não é possível demarcar um fim. Ademais, o ciclo de violência no qual as mulheres se encontram diminuem a possibilidade de que escapem, fazendo com que elas estejam sobre um mal/violência iminente, sendo de especial relevância a convicção da mulher acerca de possível agressão. Assim, a atualidade e iminência devem ser interpretadas de maneira mais ampla; c) moderação dos meios necessários: acerca da proporcionalidade, o Comitê cita o caso “Leiva, María Cecilia s/ homicidio simple”, julgado da Corte Suprema da Argentina, no qual esta afirmou que “todas essas propuestas -denunciar, huir con su hija, separarse- parecen únicamente realizarse en “el reino de lo ideal,” pues la realidad –plasmada en las estadísticas demuestralo opuesto, reflejando la imposibilidad tanto objetiva como subjetiva de escapar fácilmente del círculo de violencia doméstica”. Assim, o Comitê destacou que a mulher não pode ter a obrigação de aguentar e não se defender[1]; afirmou, também, que a proporcionalidade do meio empregado é dispensável, vez que, constantemente, mulheres que tomam iniciativa de se defender com meios inefetivos acabam por se tornar vítimas. Segundo o Comitê, as desigualdades históricas nas relações de poder entre homem e mulher fazem com que os requisitos da dogmática tradicional tenham de ser mitigados. d) falta de provocação: o Comitê rechaça qualquer tentativa de se afirmar que a mulher tenha dado causa ao comportamento masculino, pois que isso deslegitimaria a legítima defesa e reforçaria estereótipos negativos de gênero. Para reforçar tal argumento, o Comitê citou caso julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que afirmou que “es posible asociar la subordinación de la mujer a prácticas basadas en estereotipos de género socialmente dominantes y socialmente persistentes, condiciones que se agravan cuando los estereotipos se reflejan, implícita o explícitamente, en políticas y prácticas”. Através desta recomendação de mudanças na legislação ou de interpretação por parte dos Tribunais, defende-se que “la reacción de las víctimas de violencia de género no pueden ser medidas con los mismos estándares tradicionalmente utilizados para la legitima defensa en otro tipo de casos, ya que la violencia ala que se ven sometidas por el agresor en razón de su género, tiene características específicas que deben permear todo el razonamiento judicial de juzgamiento”. Percebe-se, assim, que urge que a doutrina penal brasileira passe a adotar, ou no mínimo explicar, os requisitos fixados pelo Comitê, sobretudo que nossos Tribunais (tal qual outros da América Latina, a exemplo do caso estudado) incorporem as convenções internacionais em seus julgamentos não somente nos casos em que as mulheres sejam vítimas, mas, também, naqueles casos em que sejam autoras, em especial, nos casos de legítima defesa. Finalizando, a pergunta da coluna: não seria mais fácil, efetivo ou racional fugir? Pergunta feita pelo Ministério Público argentino no caso “López, Susana Beatriz s/ recurso de casación”, no qual afirmou que “la encausada podría haber optado simplemente por retirarse de la residencia como ya lo había hecho anteriormente, eligiendo de todas las opciones posibles, la más grave”. Resposta que há muito tempo Di Corleto, dentre outras pesquisadoras já responderam:
Iuri Victor Romero Machado Advogado Criminal e Professor de Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da ANACRIM-PR. Ig: @advogado_iurimachado REFERÊNCIAS CELESTE LEONARDI, María; SCAFATI, Ezequiel. Legitima defensa en casos deviolencia de género. Disponível em: <https://revistas.unlp.edu.ar/intercambios/article/view/8072>. Acesso em 11/06/2020. SANTOS, Juarez Cirino. Direito Penal: parte geral. 8.ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018. Inter-American Commission of Women. Follow-up Mechanism to the Belém do ParáConvention (MESECVI). Legítima defensa y violencia contra las mujeres: [Aprobada en la XV Reunión del Comité deExpertas del MESECVI, celebrada el 3, 4 y 5 de diciembre de 2018 en Washington, D.C.]/ [Preparado por el Comitéde Expertas del Mecanismo de Seguimiento de la Convención de Belém do Pará (MESECVI) /Comisión Interamericana de Mujeres]. [1] Curiosamente, foi citado caso julgado no Brasil, no qual a mulher foi absolvida no Tribunal do Júri, mas que ainda tramita devido a recurso interposto pelo Ministério Público. “Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Acusada de matar companheiro é absolvida por legítima defesa. 12 de junio de 2017. Disponible en: http://www.tjpa.jus.br/PortalExterno/imprensa/noticias/Informes/568742-Acusada-de-matarcompanheiro-e-absolvida-por-legitima-defesa.xhtml” [2] DI CORLETO, Mujeres que matan. Legítima defensa en el caso de lasmujeres golpeadas. Revista de Derecho Penal y Procesal Penal Lexis Nexis,Nº 5/2006. apud CELESTE LEONARDI, María; SCAFATI, Ezequiel. Legitima defensa en casos deviolencia de género.
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