Um dos pontos mais sensíveis da advocacia criminal, sem sombra de dúvidas, reside na prisão em flagrante, não só pela prisão em si, mas por tudo que a cerca, o que vai desde o sofrimento da família e do preso até as inúmeras dificuldades de se pleitear um relaxamento ou revogação da constrição. E não fossem suficientes as dificuldades naturais decorrentes do ato prisional, o advogado criminal tem, ainda, que enfrentar a dificuldade de compreensão, seja da sociedade ou do próprio poder judiciário, de que a prisão em flagrante não é – e não pode ser – sinônimo de cometimento do crime e, por conseguinte, de condenação.
É preciso, antes de tudo, que seja posta de lado a cultura dominante de conduzir o processo criminal oriundo da prisão em flagrante como uma simples formalidade no intuito de legitimar uma condenação no futuro. A questão vai além. Nesses casos, aliás, com muito mais razão se exige a condução racional do processo penal, notadamente porque o flagrante, no mais das vezes, é levado a termo por uma autoridade pública, geralmente a polícia, e pode – embora não seja a regra – vir permeado por diversas circunstâncias relevantes, como, por exemplo, a violência policial ou a “armação” de um contexto necessário à prisão. Certo é que o estado de flagrância, em hipótese alguma, pode ser sinônimo de condenação. Para CARNELUTTI (1950, p. 77), a noção de flagrante está relacionada com a ideia de “chama, fogo” (do latim flagrare que significa queimar). Segundo o professor italiano, o estado de flagrância seria como uma chama que demonstra a certeza da combustão, da queima, pois todo mundo que vê uma chama sabe que seguramente alguma coisa arde. A visibilidade do suposto delito, a propósito, é o que permite a qualquer um do povo – exatamente, qualquer um, inclusive quem não é policial – efetuar a prisão do agente que pratica ou acabou de praticar a conduta, porquanto a aparência delitiva é perceptível de plano, estando evidenciado o fumus comissi delicti da ação. A prisão em flagrante, em termos legais, vem prevista no artigo 302 do Código de Processo Penal e, pela redação legal, pode ser constatada em algumas situações distintas, mas todas igualmente suficientes a justificar uma prisão imediata. A norma elenca três espécies de flagrância, definidos pela doutrina e jurisprudência como “flagrante próprio”, “flagrante impróprio” e “flagrante presumido”. Todos eles possuem características distintas, mas, por outro lado, possuem o mesmo efeito, porquanto justificam a imediata constrição do sujeito, ainda que sem prévia ordem judicial. O “flagrante próprio”, conforme se infere do artigo 302, inciso I e II, do CPP, se caracteriza pela proximidade entre o agente e o fato criminoso. Nessa espécie de flagrância, o indivíduo é surpreendido cometendo a infração penal, sendo que o agente, nesses casos, é interceptado no momento em que percorre as etapas do denominado iter criminis (caminho do crime). – o que justifica a prisão como forma de interrupção –; ou é capturado no momento seguinte à consumação do delito. No “flagrante impróprio” a proximidade entre o sujeito e a infração penal é reduzida. O que o caracteriza, em verdade, é a contínua perseguição contra o indivíduo logo após o cometimento do crime, perseguição esta, aliás, que pode durar horas ou dias e, mesmo assim, o estado de flagrância permanece hígido. Por fim, a norma processual traz a figura do “flagrante presumido ou ficto” (que não deve ser confundido com o flagrante forjado ou preparado, ambos ilegais). Nessa modalidade não se pode afirmar categoricamente que o agente foi o autor da infração penal, mas, sim, que este foi encontrado, logo após a prática do crime, portando materiais ou objetos da infração penal. E veja-se que o ato de encontrar, como afirma AURY LOPES JR. (2013, p. 811), deve decorrer de uma relação causal, não casual. Ou seja, o “encontro” deve partir de atos posteriores à constatação do delito no sentido de perseguir aquele que supostamente perpetrou a ação criminosa. Em todos os casos, porém, ainda que se possa falar na aparência de autoria dos crimes, por suposto, a situação passa bem longe da presunção absoluta, até mesmo porque cada uma das figuras de “fragrância” apresentadas pela lei tem seus pontos de tormento, sobretudo o flagrante ficto. Tudo isso somado a forma como costumam ocorrer as prisões. O primeiro ponto de destaque, talvez, seja justamente a forma como ocorre a prisão em flagrante. Quem milita na área criminal muito bem sabe que a grande maioria das prisões em flagrante ou são feitas pela Polícia Militar ou, se muito, são efetuadas pelas Guardas Municipais ou Metropolitanas – atualmente com atuações muito próximas à polícia. Malgrado seja correto dizer que a maior parte dos membros dessas corporações se pautam pelo cumprimento estrito dos mandamentos legais, máxime no que atine à constatação do ato de flagrância, não se pode olvidar da possível ocorrência de excessos, senão abusos, por parte de alguns policiais – e eles, de fato, ocorrem. Não é incomum que se encontrem relatos de presos violentados pela polícia a fim de “confessar” a prática criminosa – às vezes sequer inexistente – ou a indução de uma eventual vítima a reconhecer alguém como autor do crime no escopo de justificar a prisão. E existem hipóteses piores. Há casos em que policiais, por equívoco ou má-fé, praticam atos abusivos contra determinados sujeitos, escudados sob o conceito de “fundada suspeita”, e a fim de justificar a ação desastrosa, forjam ou induzem o estado de flagrância. A partir disso, amparados na “credibilidade” de suas palavras e na conivência de muitos integrantes da polícia judiciária, durante a feitura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia, efetuam a “corroboração” do flagrante com relatos combinados. Nesses casos, como a prática forense demonstra, é bastante comum que os policiais figurem na posição de condutor e testemunha do ato, e o preso passa a ser, então, a “voz dissonante” do registro oficial, passando a história a ser feita pela lógica do “dois contra um”, em que a palavra do condutor (policial) corroborada pela testemunha (policial) – muitas vezes com termo de declarações idêntico ao do condutor – se constitui na “história oficial” dos fatos. Mas não é só. Há casos também em que, embora se possa afirmar a legitimidade da prisão em flagrante, o crime cometido está amparado em causas justificadoras (como a legítima defesa ou estado de necessidade) ou exculpantes (como a obediência hierárquica), as quais, pela especificidade, tornam-se impassíveis de demonstração na órbita do auto de prisão em flagrante, demandando maior aprofundamento. E tem-se, ademais, o caso do flagrante ficto. É, digamos, uma modalidade de flagrante mais frágil do que a anterior, porquanto o crime não está “ardendo” diante dos olhos. O que se faz, em verdade, é uma presunção a partir dos elementos encontrados em poder do preso, mas não há como se afirmar, sumariamente, o cometimento da infração, pois ninguém o viu nessa condição. De qualquer sorte, a prisão em flagrante, ainda que demonstre indicativos da prática criminosa, não se reveste de nenhum caráter de presunção absoluta de culpa e, nesse sentido, não dispensa por parte do poder judiciário – e dos próprios advogados criminais – a rígida observância das regras probatórias apresentadas pelo Código de Processo Penal. A instrução processual, ainda que decorrente de prisão em flagrante, deve ser conduzida de maneira racional em que as partes tenham plena consciência de que o réu, mesmo que preso em estado de flagrância, está longe de ser presumidamente o autor da infração. Ora, nem mesmo a confissão permite tal presunção – e inclusive exige prova que a corrobore para que possa ser usada contra o réu –, o que dizer, então, da prisão em flagrante? Portanto, é imperativo – inclusive por parte de muitos advogados criminais – que se abandone a odiosa cultura de presumir a culpa e, por consequência, a legitimidade de eventual condenação criminal pela simples constatação do estado de flagrância. A racionalidade probatória, sob qualquer aspecto, deve sempre sobressair diante desses contextos, pois a “verdade” tende a ser bastante diversa dos depoimentos do condutor da prisão. Douglas Rodrigues da Silva Especialista em Direito Penal e Processo Penal Advogado Criminal REFERÊNCIAS CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el proceso penal. Buenos Aires: Bosch, 1950. Tomo IV. LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. Comments are closed.
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