Todo ato humano é passível de falhas. Isso é inegável. Tanto é assim que tal premissa culminou no muito conhecido adágio popular de que “errar é humano”. E a atividade judicial em sentido amplo, desde o início da investigação até o trânsito em julgado da sentença, por ser uma ação humana, também não fica imune a erros. Erros que, aliás, também podem ser cometidos pelos atores processuais, como é o caso da defesa e do Ministério Público, por exemplo.
Enquanto defensor da liberdade de alguém, entretanto, o advogado criminal, assim como um cirurgião, não possui ampla margem de erro. O seu trabalho demanda extremada cautela e, sobretudo, redobrada atenção aos detalhes técnicos. Às vezes conhecer o direito não se apresenta como auxiliar tão eficiente quanto conhecer os detalhes de um processo. Por isso mesmo, a atividade da defesa não costuma deixar muito espaço às distrações pueris ou às desconsiderações de pontos sensíveis. Um piscar de olhos e toda uma defesa pode se perder em definitivo. Um equívoco na contagem do prazo recursal, uma distração quanto à prova do processo, um lapso quanto aos questionamentos das testemunhas. Tudo pode ensejar na perda real e efetiva de toda uma estratégia defensiva. Apesar de tais exigências postas pela vida profissional, gostando ou não, ainda não somos insuscetíveis a falhas. Infelizmente elas irão, vez ou outra, ocorrer. Talvez em menor monta, permitindo uma rápida e eficaz correção; talvez um verdadeiro desastre, o que demandará um intenso exercício de autoavaliação e correção, para que nunca mais se repita. De toda sorte, certo é que erros acontecem. Todavia, enquanto advogados criminais, não contem com a boa vontade do poder judiciário em auxiliá-lo quanto a isso. Seguramente, não contem com a correção judicial de seus equívocos. Embora jamais devêssemos contar com o auxílio do judiciário em casos nos quais a falha provém de nós mesmos, até mesmo em razão da distância que se exige entre as partes e o julgador, quando os equivocados não pertencem às fileiras da defesa, parece que a postura adotada sempre pende para outro caminho. Assim como acontece com os advogados, o Ministério Público, enquanto órgão composto por humanos, também não se apresenta imune a erros. Muito pelo contrário. Por ser uma atividade no mais das vezes direcionada à persecução criminal de alguém, o que não faltam em seus comportamentos são equívocos dos mais variados. Não é incomum, por exemplo, observar promotores de justiça errando de maneira grosseira nas imputações penais, às vezes descrevendo um tipo ativo, mas imputando-o como omissivo. Às vezes, percebe-se que o Ministério Público, titular por excelência da ação penal, de posse de todos os elementos do inquérito policial com antecedência, olvida-se em imputar um ou outro fato já indicado durante a investigação. Não é raro, por exemplo, que o Ministério Público denuncie um roubo, no qual há indicativos da participação de um menor (e cuja menoridade já é conhecida no inquérito desde muito), sem imputar o delito de corrupção de menores. Além dessas situações, também não é incomum observar a completa fragilidade técnica de muitos promotores de justiça no que atine à descrição da conduta criminosa. É comum que se vejam descrições completamente deficitárias de elementos cruciais da imputação, como o dolo, por exemplo, ou o nexo de causalidade. Nessas situações, a norma processual penal, sabedora da dimensão do poder de acusar do Estado, prevê sanções aos acusadores que agem de forma descuidada. No caso da denúncia deficiente, a lei prevê sua inépcia e, por conseguinte, rejeição. Quanto à denúncia insuficiente, que deixa de acrescentar fatos de prévio conhecimento do promotor, a lei veda o seu aditamento posterior, devendo a sentença manter-se limitada à acusação original, ainda que insuficiente. O grande problema, contudo, não reside na previsão normativa. Quanto a isso, a lei é bastante clara em sancionar os erros da acusação com a exclusão do ato ou sua declaração de nulidade; o problema, na realidade, reside na condescendência muitas vezes adotada pelo judiciário com eventuais erros dos acusadores, postura essa que não se repete quando o erro é cometido do outro lado. A construção jurisprudencial brasileira, na contramão de qualquer consideração aos preceitos constitucionais basilares, visa, na grande maioria das vezes, suavizar as falhas – em algumas oportunidades grosseiras – da acusação, passando a considera-las como meras irregularidades incapazes de macular o ato. Ou, o que é pior, autoriza e chancela a correção dos erros da acusação, tudo no sentido de viabilizar a manutenção da atividade persecutória, em completo vilipêndio à paridade de armas. Um dos exemplos clássicos disso reside na hipótese da mutatio libelli, prevista pelo artigo 384 do Código de Processo Penal. Como é sabido, o limite do julgador reside na denúncia. Eventual sentença condenatória não pode punir fatos não descritos na prefacial. Aliás, a ausência de aditamento pelo Ministério Público, deveria, se muito permitir a punição pelo crime menor denunciado (nos casos em que se denuncia um furto e se prova um roubo), mas jamais poderia permitir que fossem considerados fatos não descritos ou que se incluíssem, de ofício, novos fatos. E não só. Também não poderia a denuncia condenar por um delito, mesmo que confessado pelo réu, se a acusação narra o fato de forma amplamente distinta. Tudo isso, de alguma maneira, serve para exigir do acusador redobrada atenção e cautela no uso de seu poder de acusar, justamente em razão do caráter infamante do processo penal. A acusação não pode ser uma aventura ou um puro perseguir temerário. Pois é. Contudo, a rotina forense demonstra que a realidade não costuma ser essa. Quando percebem que a denúncia está errada, em vez de rejeitarem o libelo, o que até permitiria ao promotor a feitura de nova denúncia, os juízes criminais, muitas vezes, preferem apontar o erro na acusação e, não satisfeitos, instar o Ministério Público a corrigi-lo – em completo prejuízo à defesa. Alguns magistrados, no intuito de manter vivo o processo penal – em total desconsideração ao polo passivo – preferem adotar construções jurídicas absurdas na intenção de “salvar” o trabalho inepto de muitos promotores. Para tanto, um dos maiores instrumentos da violação da paridade de armas reside na denominada mutatio libelli. A partir de um entendimento equivocado, a jurisprudência se firmou no sentido de que é possível ao magistrado apontar os erros da descrição fática da denúncia e intimar o promotor para que, “querendo” (óbvio que irá querer), os retifique – o que, por si, já levantaria suspeitas quanto à imparcialidade do julgamento. E não é só. A mesma jurisprudência entende que isso pode ser feito a qualquer tempo, mesmo após encerrada a instrução com o processo em fase de sentença (a lei, porém, faculta o aditamento até cinco dias após o término da instrução). E, para coroar o sentimento de “compaixão” judicial aos erros acusatórios, a posição dominante entende que o pedido de aditamento pode incluir fatos conhecidos pelo promotor desde o início da investigação, os quais restaram de fora da exordial por pura desídia mesmo (ao passo que a lei prevê, expressamente, que devem ser oriundos da instrução probatória). Noutros termos, ninguém exige cautela e respeito ao cidadão por parte de quem mais deveria ser cobrado para tanto, no caso o Ministério Público. E a vista grossa aos equívocos da acusação não terminam por aí. Nas audiências de instrução – com base na previsão absurda de participação do juiz na colheita da prova –, muitos juízes, ao inquirirem testemunhas ou interrogarem réus, questionam pontos esquecidos pela acusação, no intuito de assegurar a prova necessária para condenação. Há casos em que os magistrados, ao perceberem que o Ministério Público foi omisso em certos pontos – o que conduziria a uma absolvição pela falta da prova –, fazem as perguntas que incumbem ao promotor de justiça. Ou pior. Há vezes em que o promotor, após encerrar os questionamentos à parte ou às testemunhas, aguarda toda a inquirição procedida pela defesa para, depois, requerer ao juiz nova oportunidade de perguntar – pois percebeu que a defesa explorou ponto pertinente no caminho para absolvição. Em vez de indeferir as perguntas, ao passo que o promotor já teve a oportunidade para tanto, ocorrendo a preclusão consumativa, os juízes deferem o pedido de reinquirição, sob o argumento de que também irão permitir a defesa perguntar depois. Ora, o que perguntar depois? Os questionamentos da defesa foram feitos justamente explorando os pontos omissos da acusação. Tudo isso não passa, grosso modo, de um falso contraditório, pois, apesar de falar por último, a defesa fica inviabilizada de continuar questionando a testemunha, vez que o promotor teve duas oportunidades para não deixar nenhum ponto omisso. Aí fica fácil a construção da prova acusatória. E tudo isso, por mais triste que pareça, é um mero rol exemplificativo do que se passa no judiciário. De onde vem isso, tem muito mais. Nem argumentamos, por exemplo, sobre o caso das denúncias que não apresentam a norma complementar em casos nos quais se vislumbra a denominada “norma penal em branco”. Oxalá se o Estado-Juiz tivesse a mesma condescendência com eventuais falhas da defesa assim como o faz com a acusação. Por isso mesmo se é do seu desejo ser um advogado criminal (ou se você já é um), fique atento, ninguém aceita seus erros e falhas. Se prefere atuar amparado por uma “supervisão” judicial, no sentido de lhe permitir a correção a qualquer tempo, melhor pensar com mais carinho na possibilidade de se tornar um promotor de “justiça”. Douglas Rodrigues da Silva Advogado. Especialista em Direito Penal e Processo Penal Comments are closed.
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