A coluna de hoje é, a bem da verdade, o relato de uma experiência do autor na advocacia criminal. Talvez tenha sido o real encontro com a realidade da advocacia criminal. Muitos desconhecem os verdadeiros meandros do direito penal, ou querem desconhecer, por ser assunto que atinge, sempre “o outro”. Mas tenho que denunciar quão corrupto é o cárcere, quão dolorosa é a execução da pena.
Dentre diversos casos de presos condenados que herdei de um colega, quando este foi para a vida pública, faço referência a um, em específico, do cliente M.R.J.P., que se encontrava recolhido na Casa de Custódia de Curitiba. Comecei a visitá-lo em 2014, sendo que um dos seus maiores pedidos, além de remições, era recorrer de uma falta grave cometida em 2012. Ele tinha sido condenado a 84 (oitenta e quatro) anos de prisão por uma chacina que ocorreu em 2003, na cidade de Colombo/PR (segundo ele, não tinha participado do crime, mas prefiro não entrar nesse mérito, já que estava condenado e não me solicitou uma revisão criminal). Havia sido preso em 2003 e sua esperança sempre foi sair da prisão. A expectativa dele fora aumentando à medida que os anos se passaram e o regime semiaberto foi se aproximando. Com suas remições, em 2016, seria progredido de regime. Porém, em 2012 foi acusado de ter portado um aparelho celular dentro do presídio, o que acarretava cometimento de falta grave por infringir o Estatuto Penitenciário e a L.E.P., e, por consequência, a contagem do prazo para a progressão de regime prisional recomeçava a partir dali. A acusação de falta grave seguiu adiante e, no mesmo ano de 2012, foi homologada pelo Juiz da 3ª Vara de Execuções Penais de Curitiba/PR. Em 2015, quando eu me apresentava na Casa de Custódia de Curitiba e citava seu nome para atendê-lo, ouviam-se burburinhos entre os agentes do tipo: “Esse é bucha, Doutor...”; “O M.R.J.P? Esse é famoso aqui...”; “Esse cara faz um auê na cadeia...”, entre outros. Enfim, comecei a perceber sua inquietude dentro do presídio e isso estava incomodando presos e agentes penitenciários. Os funcionários do presídio reclamavam que ele estava muito impaciente, pedindo a todo instante a cópia integral do procedimento administrativo que apurou sua falta grave. Mas ele ia além: começou a provocar a todos dentro da Casa de Custódia, porque a ideia de que a contagem do prazo para a progressão de seu regime teria recomeçado do zero a partir de 2012 não era nada agradável. Naturalmente, começou a ficar louco dentro da prisão. Falei que aceitaria o caso, mas era um desafio: uma falta já homologada há anos não é revertida facilmente. Ele sabia que seria difícil, e me perguntou: “Doutor, acha que temos chance?”; eu respondi: “Não sei. Só sei que não custa tentar, será a única saída. São anos jogados no lixo por uma falta. Será um apelo ao juiz”. Estudei o caso e achei uma brecha: não tinha sido, o meu cliente, ouvido em juízo, durante toda a instrução daquele procedimento. À época, em 2012, referida oitiva pessoal não era obrigatória, segundo entendimento dominante. Porém, aleguei a imprescindibilidade de tal oitiva, corolário dos princípios constitucionais e, em virtude disso, com a ausência do testemunho pessoal dele, ocorrera flagrante nulidade do procedimento. Com a nulidade, o procedimento deveria ser reaberto, porém, como já tinha se passado mais de três anos, aleguei que a prescrição também ocorrera e, portanto, que a falta deveria ser afastada. Protocolei a defesa em abril de 2015. O Ministério Público achou a tese maluca e que o procedimento deveria ser mantido, já que homologado dentro da lei ocorrera há mais de três anos. O julgamento demorou muito. A 3ª Vara de Execuções Penais já não mais existia porque absorvida pela 2ª Vara. O processo na VEP já estava funcionando virtualmente, mas todo o procedimento ocorrera, em 2012, de forma física e até encontrarem foram longos meses. Durante esse lapso temporal, M.R.J.P. não aguentou: sua ansiedade e o pensamento de que, ao invés de estar a ponto de sair do regime fechado, teria que cumprir, em razão da falta grave, mais longos anos, deixou-o fora de si. Estava no escritório, quando sua companheira, de nome Susana, me ligou desesperada, informando-me de que ele teria apanhado de outros presos e sido levado em estado grave para o Complexo Médico Penal de Piraquara/PR. Dirige-me imediatamente ao CMP para vê-lo e quando o vi meu estômago embrulhou. Levei um choque. Era, talvez, meu primeiro encontro com a realidade no Direito Criminal, dentro dos presídios. Parecia não ser o mesmo homem. De cadeira de rodas, cabeça defeituosa, olhos escuros envoltos de sangue, boca torta, sem dentes e muitos hematomas no rosto. “Você sabe quem está falando com você agora?”, perguntei. Ele balançou a cabeça negativamente. Fui embora, ainda em choque. Contou para mim, outro preso que atendi juntamente com ele outro dia, que, num atendimento que fiz a eles, M. retornou à galeria e, como estava provocando todos há dias, por causa de sua impaciência sem limites, vários presos estavam o aguardando e o encurralaram, oportunidade em que lhe bateram até quase a sua morte. Ele se recuperou aos poucos, retornou à Casa de Custódia de Curitiba e sossegou mais. Estávamos todos aguardando o julgamento do incidente que eu protocolei. Na petição eu havia alegado o já dito acima, mas antes de assinar, fiz um tópico denominado “UM APELO DE UM CONDENADO A UM MAGISTRADO”. Segue trecho do tópico:
Eis que no dia 15.12.2015, recebo a intimação da decisão: a juíza acatou a tese integralmente, reconhecendo a nulidade do procedimento, a consequente prescrição e a restauração da contagem do prazo inicial: ele vai ao regime semiaberto ainda em 2016. Final feliz! Vida de advogado criminal... Edson Luiz Facchi Jr Advogado Especialista em Ciências Criminais Membro da Comissão de Advogados Iniciantes da OAB/PR Comments are closed.
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ISSN 2526-0456 |